No meio do mato, em Santa Catarina, a casa de barro toda ecológica de Ricardo Scalco atrai milhares de olhares na internet

Na cidade ou no campo, perfis nas redes compartilham todo o processo, alimentando do outro lado das telas o sonho da casa própria construída do zero com tecnologias de baixo custo

Nada como o conforto do próprio lar. A frase pode ser clichê, mas é o mantra dos mais de 2 milhões de seguidores que babam acompanhando a construção da casa em formato de celeiro da designer de interiores Karla Amadori, de 35 anos. Há quase uma década, ela faz vídeos ensinando com quantos paus se faz uma estante de livros e como pode ser fácil fazer um castelo com uma lata de tinta, muito suor e criatividade. Como não paga nada para ver, o público fica num gargarejo infinito.

A catarinense deu um passo além da onda que começou a pegar forte com o programa “Extreme Makeover”, do início dos anos 2000, em que a rede americana ABC transformava ruínas ou lares sem graça na casa dos sonhos de seus eleitos. Karla tem arrastado fãs erguendo do zero um confortável ninho em formato de celeiro com vista para o verde, em Gramado (RS). Para isso, foi de mala e cuia para a cidade. E sem ter onde morar. Ela e o marido, juntos na empreitada, alugaram um pouso e partiram para a obra que começou em junho de 2021.

“Pensamos primeiro em um chalé, mas dificultaria a decoração. Aqui desenhamos até os armários e vamos compartilhando o passo a passo nas redes. As pessoas falam que se conectam com a nossa história e se animam a dar impulso a seus próprios projetos”, diz a designer de interiores que, até 2016, não tinha dinheiro suficiente para sair da casa dos pais em Santa Catarina.

A “bossa” do endereço faz toda a diferença. Karla e seu companheiro, o designer gráfico Johnatan Matos, de 32 anos, conseguiram reduzir custos com uso de tecnologia e materiais de baixo impacto na natureza, como a estrutura feita em aço, conhecida como steel frame. A construção pôde seguir usando pouca água, aproveitando material de demolição e ainda ficou pronta em menos tempo. São 320 metros quadrados, com cada milímetro pensado — e exibido ao vivo —, que custaram R$ 1,5 milhão.

Fascínio para seguidores

Além da casa e fãs, a dupla ganhou fonte de renda. O fascínio do brasileiro pela ideia da casa própria está mais vivo do que nunca. Em tempos de nômades digitais e do desapego de bens materiais — em que os carros perdem a vez para o uso do transporte público —, o país ainda tem grande parcela da população esperando a vez de pisar no seu imóvel próprio. De acordo com o primeiro Censo QuintoAndar de Moradia, realizado em parceria com o Instituto Datafolha no ano passado, 87% dos brasileiros sonham em ter sua casa. A parcela mais convicta é formada por jovens entre 21 a 34 anos e pessoas das classes sociais D e E.

Com a maioria de seu público feminino, na mesma faixa etária da pesquisa, Karla entende que essa é a razão de seus conteúdos serem virais.

“Há alguns anos nós pensávamos em casar, mas teríamos que morar em algo mais convencional e menor porque não tínhamos condições. À medida que fomos crescendo, o sonho cresceu junto”, comenta a designer, que acredita que as obras podem ser adaptadas a cada realidade.

O estilo rústico, com bastante madeira, também é apaixonante, e quem nos segue quer saber se consegue deixar a própria casa mais bonita, mudando a cama, criando uma luminária, com produtos e técnicas mais acessíveis.

No mesmo embalo, mas com menos dinheiro, o casal de engenheiros civis Amanda Alves, de 27 anos, e Fernando Ribeiro, de 30, levantaram tijolo a tijolo a própria casa no Ceará. Após verem que é possível fazer escolhas baratas e eficientes, os dois decidiram compartilhar seus conhecimentos na internet e em um curso que lançaram.

“Nosso primeiro desejo era ter uma casa própria. E ajudar outras pessoas a realizar esse sonho é como se a gente estivesse, toda hora, vivendo isso de novo. É um propósito muito lindo”, diz Amanda.

Para o antropólogo social Bernardo Conde, a compra de um imóvel para o brasileiro está ligada ao reconhecimento de uma autonomia e estabilidade, que tende a ser mais importante para os mais pobres.
O anseio de testar diferentes decorações e estilos de residência está atrelado diretamente à busca por um conforto pessoal. Mas o sucesso desses canais de construção se explica mais pelo universo da fantasia.

“É muito sedutora a ideia de morar em um lugar legal, e há a fantasia de uma moradia bem bolada. Esses sites atraem você mostrando ser possível fazer uma casa sua, a um custo baixo, no meio de uma região serrana ou um lugar mais isolado. É diferente de uma meta de vida de ter a casa própria, consolidar-se como um adulto e pertencer ao mundo”, explica o antropólogo.

Assim como no Brasil, em outros países o fenômeno se repete. Nos EUA, por exemplo, a americana Kate Rumson, além de compartilhar dicas de obra, inaugurou uma espécie de reality em que seus mais de 2,5 milhões de seguidores decidiriam como ficariam os cômodos de seu imóvel. O casal de criadores de conteúdo Jobel Fernandez e Gerard Santos, nas Filipinas, também dá dicas de “faça você mesmo” no YouTube, para 95 mil inscritos.

Inspiração primitiva

Quando era uma década mais jovem, o professor e empresário Ricardo Scalco, de 42 anos, não imaginava que a bioconstrução iria virar uma meta de vida: em 2015, ele conseguiu concretizar o projeto de construir uma casa de barro, que já foi seu lar e hoje é seu ganha pão. Ela tem formato arredondado, paredes irregulares de 45 centímetros de espessura e pintura feita com ingredientes naturais como a linhaça. Scalco e a então companheira levaram dois anos para erguer com as próprias mãos a casa, de 170 metros quadrados, que fica na região de Guaraciaba, em Santa Catarina. Apaixonado pelo céu repleto de estrelas à noite no meio do mato, o professor hoje tem mais de 110 mil seguidores que acompanham as aventuras desse estilo de vida. O interesse é tão grande que ele passou a dar aulas de bioconstrução e já formou mais de cem alunos.

“Minha casa é feita com a técnica cob, a mais ancestral que tem, no qual a gente mistura a argila com o pé e aplica com as mãos. Tem apenas 40 centímetros de tijolo que dá a sustentação para as paredes serem erguidas com barro. Tudo aqui é material de demolição, madeiras produzidas na comunidade e pedras”, diz o professor.

Uma pesquisa feita pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias e pela Brain Inteligência Estratégica em 2021 mostrou que os brasileiros estão dispostos a pagar mais caro para morar em imóveis sustentáveis. Dos entrevistados, 66% consideram importante ter energia solar, e 56% pagariam mais por uma residência com tecnologia para reutilização de água da chuva. Além disso, 57% das pessoas preferem moradias com espaços arejados e integrados à natureza.

A bioconstrução, em geral, deixa os projetos cerca de 80% mais baratos. Segundo Ricardo, ele pagou R$ 90 mil por sua residência, e esse é um dos principais atrativos para as pessoas que o acompanham na internet e aprendem com os vídeos que ele publica no Instagram e no YouTube.

“Ensino como fazer banheiro seco, que não utiliza água na descarga, e a construir casas de pau a pique, que podem ficar prontas em oito meses. Isso tudo é um mundo ecológico em ascensão”, avalia.

Com informações de O Globo