“Serial Kelly”, estrelado por Gaby Amarantos, conta a história de Kelly, a primeira serial killer feminina do Brasil. Ou quase. O primeiro longa-metragem do alagoano René Guerra é puro suco de Brasil, com tudo de bom e de ruim que a cultura brasileira tem. O filme, atualmente em cartaz nos cinemas, traz a essência exuberante, bagaceira, kitsch e barroca da grande mistura que é um país que, por um lado cultua e celebra o talento e a ousadia de mulheres como a cantora de forró eletrônico Kelly, mas também as oprime e aprisiona sob uma lógica machista e muitas vezes misógina.
Kelly está em turnê pelo Nordeste com seu motor home. Ela tem, emprestada de Gaby (que está ótima em seu primeiro papel de protagonista no cinema em uma carreira de atriz que ela vem construindo há cerca de dez anos), um talento impressionante. Ela é grande mais para as casas de show de beira de estrada, as boates decadentes e as praças de alimentação de shoppings cafonas em que se apresenta em troca de uns trocos.
Entre um show e outro, um amor passageiro e outro, ela é passada para trás pelo suposto empresário, sofre pequenas-grandes violências, traz um histórico de abusos e abandono. De uma explosão de raiva, um primeiro assassinato, uma fuga e um rastro de outros assassinatos vai sendo deixado por ela, que também foi, como entendemos, deixada muitas vezes por homens tóxicos e exploradores.
Ainda que com cores exageradas, borradas, muito neon, perfume forte e barato, e um humor peculiar que o País do deboche conhece bem, “Serial Kelly” é um retrato de tantas e tantas trajetórias de brasileiras que poderiam ir longe se tivessem oportunidade, respeito e justiça. Infelizmente, Kelly foi até onde a realidade lhe permitiu e encontrou meios violentos para sobreviver em um País em que a realidade parece muitas vezes surreal.
O Brasil é um dos países em que a violência contra a mulher é assunto de primeira ordem e em que, segundo dados oficiais, uma mulher é vítima de feminicídio a cada sete horas. Na realidade, a resposta a esta violência vem de diversas formas, incluindo com violência e até homicídio. Na ficção, Kelly responde com violência e se torna, por isso, notícia nos jornais sensacionalistas e, a partir disso, uma caçada ao monstro pela polícia local começa.
O roteiro assinado por René Guerra e Marcelo Caetano poderia seguir o caminho clássico de filme policial de caça e prisão à assassina. Mas a trajetória muda quando é uma delegada que fica responsável pelo caso. Fabíola (interpretada com maestria por Paula Cohen) não compra a versão meramente de que se trata de uma serial killer e pronto. Ela, como cena que está, inclusive no trailer do filme, diz, acintosa, aos policiais que a acompanham que esqueceu que “aqui cada defunto tem um cheiro”. Por aqui, entende-se o Brasil profundo por onde se embrenha cada vez mais Kelly em sua fuga, mas aqui também é o País todo.
Sobre a escolha de Gaby Amarantos para o papel, Guerra comenta que foi um grande encontro, mas que, como vem, de outros trabalhos, do universo em que constrói personagens que desafiam as convenções, o nome da cantora era uma escolha coerente. “O papel precisava ou de uma atriz que cantasse ou de uma cantora que atuasse. Mas foi por meio do desejo, de uma busca incessante e do encontro. Gabi demorou a ler o roteiro de certa forma, mas quando ela leu, eu peguei um avião e fui encontrá-la”, contou o diretor em conversa com o podcast Plano Geral (no episódio que vai ao ar na próxima segunda).
“Sou uma pessoa muito intuitiva, das conexões e do mistério da vida. A Gaby já tem uma performance de palco. Eu venho de um trabalho da construção de personas, do universo das travestis e do universo drag. Então, a persona da Gaby e a pessoa Gaby já me atraiam de certa forma. Já fui para esse encontro sabendo que a gente já tinha laços em comum. Muito do público da Gabi é LGBTQIA+ e ela sempre teve um discurso muito feminista com muitos atravessamentos. Mas nosso encontro olho no olho durou quatro horas”, concluiu o diretor sobre a primeira conversa que foi um amor à primeira vista.
Foi esse encontro que deu à cantora a segurança para encarnar uma personagem que traz em si todas as contradições deste Brasil exuberante e contraditório, mas em que, mais que a violência como denominador comum, é a sororidade que une mulheres aparentemente muito diferentes, sejam elas nordestinas, “sudestinas”, héteros, cis, trans, religiosas ou não.
Como também diz Fabíola, em terra de matadores, quando a mulher é quem mata, ela vira serial killer. São estas contradições, retratadas com engenhosidade, sarcasmo e humor (afinal, é o que nos salva) que fazem de “Serial Kelly” um filme único, que vai do drama à tragédia, passando, como não poderia deixar de ser, pela indefectível comédia.
Com informações do Uol