“Weri, para aqui! Aqui precisa ponte. Tá vendo aquela fruta naquela árvore? O meky ama. Quando tem essa fruta, ele cruza muito a rodovia… Weri, para aqui de novo! Tem muito atropelamento do kixiri. Precisa de ponte aqui.” Weri, na língua dos indígenas Waimiri-Atroari, significa mulher. Meky é macaco-prego e kixiri, sagui-da-mão-dourada.
A conversa acima, que misturou termos do kinja iara com o português, aconteceu no final de 2021. A bióloga Fernanda Abra dirigia ao longo da rodovia BR-174, que corta a Floresta Amazônica entre os estados de Amazonas e Roraima. Ao lado dela, três líderes indígenas indicavam os melhores pontos para a instalação das pontes artificiais que ligariam o dossel das árvores e permitiriam que mamíferos arborícolas cruzassem a estrada sem ser atropelados.
“Foi um dos melhores dias da minha vida. Foi um desbunde de conhecimento e um aprendizado maravilhoso”, relembra Fernanda. “As comunidades tradicionais sabem exatamente o que é necessário para a proteção das florestas.”
A identificação dos melhores pontos para a colocação das pontes era uma das partes mais importantes da implementação do Projeto Reconecta. O principal objetivo da iniciativa, criada por Fernanda, era estudar os modelos mais adequados de passagem da fauna para esses animais de pequeno a grande porte, que ficam a maior parte de sua vida na copa das árvores e que, com a construção de rodovias, acabaram isolados em habitats fragmentados.
O Brasil está no meio de um sério dilema ambiental. O país possui a quarta maior rede rodoviária do mundo, ao mesmo tempo em que 40% de suas espécies de primatas estão ameaçadas de extinção, algumas delas endêmicas, ou seja, que só existem aqui e em nenhum outro lugar do planeta. Estima-se que 9 milhões de mamíferos morram atropelados, por ano, nas rodovias brasileiras.
Fernanda acumula décadas de trabalho nessa área. Ela é especialista em manejo de fauna, particularmente em rodovias e ferrovias. Pesquisadora de pós-doutorado do Smithsonian’s National Zoo and Conservation Biology Institute (EUA) e pesquisadora associada do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), foi durante o recebimento de um prêmio internacional, o Future for Nature Awards, em 2019, que a brasileira colocou como meta criar uma solução simples e de baixo custo para reduzir o número de atropelamentos de fauna.
“Eu jurei para mim mesma que não queria mais só estudar os impactos causados pelas rodovias e o tráfego, mas queria salvar o maior número de animais que conseguisse implementando medidas de mitigação”, conta.
Até então a bióloga tinha trabalhado mais com projetos para evitar o atropelamento de espécies terrestres; o desafio agora era focar nas arborícolas, já que o Brasil tem a maior diversidade global de primatas que se deslocam por árvores.
A parceria fundamental com os Waimiri-Atroari
Ao iniciar o planejamento para o Reconecta, Fernanda tinha três áreas em mente para a instalação das pontes de dossel, em rodovias que necessitavam ter grandes fragmentos florestais dos dois lados. A busca foi difícil, já que para surpresa dela, mesmo na Amazônia, era quase impossível encontrar estradas com fragmentos ainda íntegros.
Entre as três rodovias definidas estava um trecho de 125 km da BR-174, que corta parte dos 2,3 milhões de hectares de terra habitados pelos Waimiri-Atroari, região considerada uma das mais bem preservadas do bioma, principalmente pela governança exemplar de seu território (esse povo sofreu um genocídio histórico durante a ditadura militar, época de expansão no Norte do país, e 2.650 mil deles foram mortos).
Apesar de sua grande experiência na construção de travessias de fauna, a bióloga nunca tinha atuado na Amazônia, mas logo descobriu porque a BR-174 seria o local perfeito para o projeto.
“Há quase 30 anos os Waimiri-Atroari queriam estabelecer pontes artificiais de dossel nessa rodovia”, diz. “E os esforços deles são tão grandes e poderosos que, graças à intervenção junto ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e à Universidade Federal do Amazonas (UFAM) sobre as podas na BR-174, existem quase 30 pontes de conexão natural da floresta em cima da rodovia.”
Em 2022, com os lugares determinados e as pontes artificiais prontas, confeccionadas com a ajuda dos indígenas, o Reconecta instalou 30 delas, com cerca de 7 metros de altura – na verdade, 15 pares, cada um com um modelo diferente para que se pudesse entender qual deles os macacos usariam mais.
Em todas elas há duas armadilhas fotográficas, uma voltada para a travessia da ponte, que registra quais animais a estão utilizando, e outra com a câmera em direção da floresta para observar quais bichos chegam ali e desistem de usar a travessia. “Dessa maneira conseguimos entender os índices de aceitação e rejeição às nossas pontes de dossel”, explica Fernanda.
Com as imagens das câmeras, já é possível comemorar bons resultados. Nos primeiros dez meses de monitoramento, oito espécies diferentes foram documentadas – não apenas macacos, como o sagui-de-mão-dourada (Saguinus midas) e o mico-de-cheiro (Saimiri sciureus), mas também juparás (Potos flavus), cuícas (Marmosops sp.) e gambás (Didelphis sp.).
Os vídeos também ajudaram a mostrar que os mamíferos arborícolas da região preferem o modelo de ponte que possui apenas uma corda única, grossa, trançada sobre um cabo de aço.
Para os Waimiri-Atroari, proteger a fauna da floresta é essencial para o seu modo de vida. Especialmente o sagui-da-mão-dourada, ou kixiri. “Nossa história conta que Mauá (Deus do povo Waimiri-Atroari) fez o kixiri. É por isso que nós não gostamos de vê-los morrendo na estrada. Porque Mauá saiu do kixiri para ser livre, para viver e ensinar. Ele tem que estar vivo”, destaca o líder indígena Sawa Aldo Waimiri.
Reconhecimento internacional com o Whitley Awards
O Reconecta é um projeto multidisciplinar. Além da sabedoria indígena e da ciência biológica, foram necessários ainda outros conhecimentos para a implementação das pontes, revela Fernanda. “Tivemos que aprender muito de engenharia civil, engenharia de materiais, arquitetura e de normas rodoviárias para enfim criar uma solução que fosse adequada para aquele ambiente, respeitando toda a legislação, e mais importante, que fosse replicável.”
No começo de maio, o sucesso do projeto amazônico ganhou um grande reconhecimento internacional. A bióloga estava entre os seis vencedores da edição 2024 do Whitley Awards, concedido há 30 anos pela organização britânica Whitley Fund for Nature (WFN) e considerado como o “Oscar da conservação da natureza”.
A brasileira, contudo, faz questão de ressaltar que o Reconecta é um conjunto de esforços, que conta com a parceria de diversos órgãos e instituições, como o DNIT, o Instituto Nacional de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama), o IPÊ, a UFAM e o Smithsonian Institution. Todavia, os Waimiri -Atroari estão no coração do projeto. Tanto que ela irá deixar o troféu que recebeu com a comunidade na Amazônia.
“Temos que continuar esse projeto; sem as passarelas, os animais morrem muito. Antigamente não era assim, havia muitos bichos”, afirma Mario Paruwe, líder dos Waimiri-Atroari. “Mas, com as pontes, temos visto macacos-aranha, macacos-prego passando de um lado para o outro da floresta”.
Nos próximos meses, o Reconecta será testado em outros estados e até no exterior, no Suriname. No Brasil, trechos da BR-262, no Mato Grosso do Sul, ganharão travessias de fauna, e em Alta Floresta (MT), cinco pontes artificiais também serão colocadas em ruas e avenidas.
O município não foi escolhido por acaso. Oito espécies de primatas vivem em suas matas, cinco delas ameaçadas de extinção, e entre suas principais ameaças está a colisão com veículos. Uma dessas espécies é o zogue-zogue (Plecturocebus grovesi), descrito há apenas cinco anos.
Já na BR-319, rodovia que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM), o DNIT planeja instalar quase 100 pontes de dossel.
“Quarenta por cento dos primatas brasileiros estão ameaçados! Então mitigar o impacto de rodovias para esse grupo é como colocar a tampa no ralo da extinção desses animais”, acredita a bióloga. “Tornar a infraestrutura de transporte mais sustentável para a fauna é um grande aliado para combater a crise da biodiversidade e a perda de espécies.”
Reportagem publicada no Notícias da Floresta / Uol (Por Suzana Camargo)
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