Quando a funcionária da Apollo Go disse que eu andaria no carro autônomo da empresa durante 40 minutos, achei que era uma piada. Imaginei que daria uma volta rápida pelo estacionamento.
Só me dei conta da loucura ao me ver no meio de um cruzamento movimentado no subúrbio de Pequim, dentro de um carro sem motorista. A cada semáforo e mudança de faixa, eu olhava para o espaço vazio atrás do volante com medo de o sistema de direção autônoma dar uma bobeada e o carro bater.
Os chineses já fizeram mais de 4 milhões de viagens nos veículos da Apollo Go, que são todos elétricos. Segundo a empresa, eles nunca causaram um acidente. No máximo, os carros foram atingidos por culpa de terceiros, mas não houve nenhuma colisão grave.
O serviço funciona totalmente desprovido de presença humana em áreas das cidades de Pequim, Wuhan, Shenzhen e Chongqing —e com um “operador de segurança” dentro do carro em outras seis cidades.
É como se fosse um Uber: o cliente pede o carro pelo aplicativo da Apollo Go e o preço é semelhante ao do serviço premium do Didi, equivalente chinês do Uber Black. Hoje, para popularizar o serviço, a empresa oferece descontos de até 90%.
Para garantir que a pessoa está entrando no carro certo, já que não tem para quem perguntar isso, o táxi mostra em um letreiro os quatro últimos algarismos do número de celular de quem solicitou a corrida e só abre a porta quando o código enviado para o aparelho do cliente é digitado. Em uma tela fixada atrás do banco do motorista, é possível acompanhar o trajeto e ver o que o carro autônomo “enxerga”: todos os veículos que o circundam, faixas e semáforos.
Os 600 carros autônomos da Apollo Go usam o nível mais sofisticado de inteligência artificial (IA), que exige os chips mais avançados. Essa e outras tecnologias de ponta que fazem parte do cotidiano dos chineses estão no centro da disputa entre o país asiático e os Estados Unidos, a chamada Guerra Fria 2.0.
Washington impôs em outubro mais uma rodada de sanções que proíbem a venda de chips necessários para desenvolver modelos de IA e equipamentos para fabricá-los para Pequim.
Os veículos da Apollo Go usam dados das inúmeras câmeras do carro e dos semáforos da cidade, além da LiDAR (sigla que significa Detecção de Luz e Classificação em inglês), uma tecnologia ultra estratégica que emprega luz pulsada e laser para medir distância, velocidade e altitude de objetos. A LiDAR permite mapear ambientes a longa distância e, ao contrário de câmeras, funciona bem mesmo com pouca luz.
Tanto a China quanto os EUA usam a LiDAR em drones e veículos militares para avaliar remotamente danos e detectar minas aquáticas. A ONU vem alertando para o perigo representado por essa tecnologia, que tem potencial para “automatizar” completamente conflitos bélicos.
A cidade de Shenzhen, uma potência futurista de 18 milhões de habitantes no sul da China, é um símbolo do que está em jogo na guerra fria tecnológica. Lá, estão sediadas a Huawei, empresa de telecomunicações; a BYD, líder em carros elétricos; e a Tencent, que criou o super aplicativo WeChat, onipresente na China, e desenvolveu chips e um grande modelo de linguagem nos moldes do GPT da OpenAI. Todas dependem dos chips avançados que estão sendo bloqueados pelos EUA.
A Huawei foi gradualmente cortada do fornecimento global desses chips e de equipamentos a partir de 2018, a princípio por violações a sanções americanas contra o Irã. A medida teve um impacto brutal sobre a empresa que já foi a maior vendedora de celulares do mundo —sua participação de mercado caiu de 18% em 2020 para 2% em 2022.
É a Huawei que está por trás da infraestrutura digital que faz de Shenzhen uma “cidade inteligente”. A cidade inteira foi reproduzida em um modelo 3D chamado de seu “gêmeo digital”, usado para tomar decisões de planejamento urbano. Os cidadãos acessam todos os serviços públicos através de aplicativos.
Mais de 30 mil câmeras inteligentes estão espalhadas pelos cruzamentos de Shenzhen. Além dessas, há outras milhares em prédios e casas. Com ajuda da IA, o cérebro digital dos dispositivos avalia dados do fluxo de veículos e ajusta o ritmo dos sinais verde e vermelho nos semáforos, o que reduz os congestionamentos. Muitas câmeras também estão ligadas às delegacias de polícia.
O preço da praticidade é a perda de privacidade.
“Elas controlam o tráfego e mantêm a paz da sociedade”, diz Xu Hao, diretor de serviços da estatal Shenzhen Smart City, maior empresa de “cidades inteligentes” da China, que implementou sistemas de IA para administrar 120 cidades no gigante asiático e no mundo, entre elas Riad, capital da Arábia Saudita; Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes; e Singapura.
“Se um corretor de imóveis recebe um cliente interessado em uma casa, a câmera vai permitir o reconhecimento facial e o sistema pode informar ao vendedor se esse será o primeiro imóvel do comprador e se ele tem antecedentes criminais.”
Todos os dados são compartilhados com o cérebro digital da cidade e agregados a informações demográficas, como crescimento populacional, e de atividade econômica. Com isso, as autoridades conseguem fazer projeções de onde será necessário ampliar a rede de transporte público ou construir novas vias, planejar obras de manutenção e medir o impacto delas.
A cidade também administra a chamada economia de baixa altitude. São 3 milhões de voos de drones por ano em mais de cem rotas pré-aprovadas para entrega de comida, remédio e até sangue para transfusão.
Às 11h50 de uma quinta-feira de novembro, em Shenzhen, eu me juntei aos milhares de chineses que esperam seu almoço chegar do céu.
Em um dos aeroportos de drones da Meituan, uma das maiores plataformas de entregas da China, quatro drones se preparavam para voar até um dos 18 quiosques espalhados por um perímetro da cidade, próximos a conjuntos de prédios de escritórios. Da sede, pilotos de drones controlam os aparelhos usando detalhados mapas em 3D.
Por driblarem tráfego, as entregas por drone costumam demorar cerca de 15 minutos menos que as convencionais, informa Junwei Yang, chefe de operações de drone da Meituan. Mais de 33,7 mil chineses já pediram sua comida por drone pela Meituan em seus dois anos e meio de operação em Shenzhen.
Mas a automação não é completa. Os funcionários que buscam a comida nos restaurantes chegam correndo, ofegantes, para acomodar os pedidos nos drones. Se ultrapassarem o limite de tempo para fazer isso, recebem descontos em seus salários.
Às 12h12, uma sacola com meu pedido de sopa com dumplings —um bolinho salgado chinês típico— chegou no quiosque. Apresentei o QR code que me haviam enviado pelo celular, abriu-se um compartimento no quiosque e eu peguei a caixa da Meituan. Comi sentada em um banco, ao lado de inúmeros chineses que trabalham em escritórios na proximidade e recebem seus almoços por via aérea.
A maior empresa de tecnologia da China, a Tencent, é dona de parte da Meituan. Ela está por trás do WeChat, um aplicativo que é uma mistura de WhatsApp, Pix, Uber, Waze, Rappi e comércio online.
Mais de 1,3 bilhão de pessoas usam o WeChat (chamado de Weixin na China). Muitos chineses abandonaram de vez o uso de dinheiro e cartão, recorrendo ou ao QR code do WeChat Pay, o aplicativo de pagamentos do WeChat, ou ao seu concorrente AliPay, da Alibaba.
No WeChat, é possível encontrar informações sobre um destino turístico, reservar um quarto de hotel no local, comprar passagens aéreas, pegar um táxi até o aeroporto, encaminhar uma reclamação ao regime se alguma coisa não der certo, e fazer uma doação para reconstruir partes da grande muralha da China — tudo sem sair do aplicativo.
Os dados gerados pelo uso do WeChat são usados para treinar algoritmos de recomendação, por exemplo, e traçar detalhados perfis de seus usuários.
Outra das empresas sediadas em Shenzhen é a BYD, fornecedora da maior parte dos milhares de ônibus silenciosos da cidade —o transporte público é inteiramente elétrico desde 2017. O SkyRail da BYD, similar ao monotrilho da empresa que será operado na linha 17-ouro em São Paulo, não tem motorista.
Até sua limpeza e carregamento de bateria são automatizados. É o equipamento que determina quando está sujo demais, dirigindo-se para o lava jato, ou está com pouca carga, encaminhando-se para a garagem e acoplando-se ao carregador. Se os vagões estão muito cheios, o sistema aumenta o tempo em que as portas ficam abertas para os passageiros entrarem e saírem.
A BYD assumiu a antiga fábrica da Ford em Camaçari, na Bahia, e prevê que começará a produzir veículos até o final de 2024. Com investimento de R$ 3 bilhões, será a primeira fábrica de carros elétricos e híbridos da BYD fora da Ásia. A planta também fará processamento de lítio para baterias e planeja carros híbridos com etanol.
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