Cientistas do Field Museum, em Chicago, nos EUA, realizaram tomografias em múmias do acervo da instituição e descobriram um novo detalhe sobre as práticas mortuárias dos antigos egípcios.
Não era todo embalsamado que tinha seus órgãos armazenados em vasos. Alguns corpos tinham seus respectivos órgãos empacotados dentro do próprio corpo.
Os arqueólogos chegaram esta conclusão após instalar um tomógrafo na área externa do museu. Foram examinadas 26 múmias em apenas quatro dias, sem retirar uma faixa sequer. Dessa forma, eles conseguiram preservar a integridade das técnicas utilizadas há mais de três mil anos. Foram realizadas milhares de imagens de cada corpo, o que permitiu que cientistas as reunissem para compor uma espécie de visão 3D das cavidades.
Dois casos se destacaram até o momento, mas o time do Field Museum espera continuar mapeando mais múmias. “De uma perspectiva arqueológica, é incrivelmente raro que você tenha a oportunidade de investigar ou ver a História da perspectiva de um único indivíduo. Esta é uma ótima forma para nós olharmos para quem estas pessoas foram, não apenas o que fizeram ou as histórias que criamos sobre eles, mas os indivíduos reais vivendo naquele tempo”, refletiu Stacy Drake, gerente da coleção de restos humanos do museu, em comunicado à imprensa.
Chenet-aa e a cartonagem selada
Apelidada de “Lady Chenet-aa” pelos estudiosos do museu, mulher teria vivido durante a 22ª dinastia egípcia. Isso dá a sua múmia a idade aproximada de três mil anos, apesar da ótima condição. A análise com as tomografias levou os cientistas a colocar sua idade entre o fim dos 30 anos ou início dos 40 no momento da morte.
Ela perdeu diversos dentes ainda em vida e há desgaste em outros na arcada. Isso indica que ela costumava comer alimentos que possuíam grãos aleatórios de areia que desgastaram o esmalte. Além disso, quem preparou o corpo colocou “olhos complementares” no crânio para garantir que ela tivesse visão em sua vida após a morte.
“A visão dos antigos egípcios da vida eterna é similar às nossas ideias sobre planos de previdência. É algo para o qual você se prepara, economiza dinheiro durante toda a sua vida, e espera que tenha o suficiente no fim para poder aproveitar. As adições são bastante literais — se você quer olhos, então precisa haver olhos físicos, ou ao menos uma alusão física a eles.” disse J.P. Brown, curador sênior de antropologia do museu, em comunicado à imprensa.
O corpo de Chenet-aa foi colocado em uma cartonagem, ou seja, um invólucro similar a papel-machê (e, portanto, mais delicado que um caixão ou sarcófago). No entanto, até hoje não havia sido encontrado um ponto de entrada ou saída do corpo dali, o que intrigava os cientistas, já que a múmia parecia misteriosamente trancada.
Com os exames, contudo, os arqueólogos determinaram que as costuras estão nas costas de Chenet-aa. A cartonagem foi construída ao redor do corpo, com a múmia em pé, graças a um processo de umidificação dos materiais que foram moldados no formato do corpo. Com o invólucro pronto, ele foi cortado da cabeça aos pés, aberto sobre o corpo já enfaixado e costurado novamente. Para selar a costura, foi colocado um painel de madeira.
O importante Harwa, que virou bagagem extraviada
Considerada uma das múmias favoritas do time do museu, Harwa viveu na mesma época que Chenet-aa e teria sido um porteiro do celeiro real que morreu entre 40 e 45 anos. Apesar disso, suas tomografias revelam que ele não possui sinais de lesões físicas devido a trabalho repetitivo e o excelente estado de seus dentes reforçam a teoria e que ele possuía um importante status na época, além de acesso a alimentos de qualidade.
Ele foi a primeira pessoa mumificada a voar de avião, em 1939 e, ao chegar em Nova York visitou até um espetáculo da Broadway. Quando sua aparição na Feira Mundial de Nova York terminou, ele também se tornou a primeira múmia a se tornar bagagem extraviada, já que foi parar acidentalmente em São Francisco antes de voltar ao Field Museum.
Por que eles foram mumificados?
Os antigos egípcios acreditavam que a alma permanece dentro do corpo mesmo após a morte. Então preferiam embalsamar e mumificar as pessoas para preservar seu espírito para a vida eterna, segundo o time do Field Museum.
Este ritual, com seus aspectos técnicos e espirituais, levava cerca de 70 dias e incluía a remoção de órgãos internos, exceto o coração, porque era considerado o lar da alma. Sais eram usados então para ressecar os corpos, que depois era enrolado em faixas de linho às vezes junto com orações ou amuletos de proteção. Só então era realizada a cerimônia de enterro — o passo final para o envio daquela alma para a vida eterna.
Os órgãos retirados eram colocados em vasos canópicos. Cada um deles com uma tampa com símbolos representando cada um dos quatro filhos do deus egípcio Horus, que protegeria cada órgão. Imsety (deus que tinha uma cabeça humana) era o guardião do fígado, Hapy (com cabeça de babuíno) protegia os pulmões, Duamutef (com cabeça de chacal) guardava o estômago enquanto Qebehssenuef (face de falcão) preservava os intestinos.
Mas a análise das múmias do Field Museum mostrou que este processo nem sempre era realizado à risca. Além disso, ao procurarem por doenças óbvias, idade e sexo nas tomografias, os cientistas identificaram que boa parte dos egípcios deste período possuía desgaste significativo dos dentes por consumir alimentos misturados à areia do deserto. Chenet-aa e Harwa, contudo, eram pessoas de prestígio no entendimento do time, já que não há sinais de doenças devido ao trabalho físico no corpo.
Justamente pela alta posição social, ambos receberam um cerimonial e tratamento funerário de bastante qualidade. No entanto, a análise de outras múmias mostra descuidos com mortos de menor prestígio. Um dos caixões está cheio de hieróglifos que indicam que um sacerdote teria sido enterrado ali, mas a múmia dentro era de um menino de 14 anos.
“Sabemos que, em alguns casos, as pessoas realmente queriam ser mumificadas, mas não tinham necessariamente os melhores meios para conseguir isso. Você podia conseguir um caixão mais barato emprestando ou usando o de outra pessoa”, esclareceu Drake à CNN. As próximas tomografias podem, por isso, revelar o quão comum a barganha funerária era no Egito Antigo.
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