Um despacho publicado pelo presidente do Ibama, Eduardo Bim, na semana passada, oficializou mudanças na forma de atuação dos agentes do órgão.
Agora, para que uma multa ou autuação seja aplicada, será necessária a comprovação do dolo ou culpa do infrator, o que, na opinião de especialistas, poderá vir a ser mais um obstáculo no cumprimento das fiscalizações e combates a crimes ambientais.
No caso de uma irregularidade ambiental, um infrator está sujeito a três tipos de sanções, na esfera penal, administrativa ou civil. Enquanto sanções penais demandam provas mais robustas, por causa do processo criminal a ser julgado, as sanções administrativas são aplicadas de uma maneira mais automática.
Pelo entendimento anterior à nova mudança, os fiscais do Ibama trabalhavam sob a tese da “responsabilidade objetiva”, ou seja, era preciso mostrar a ação, ou omissão, do acusado do dano ambiental, a partir de evidências concretas, como flagrante de corte ilegal de árvores dentro de sua propriedade. Numa analogia, funciona semelhante às multas de trânsito.
Agora, porém, além do dano ambiental materializado, a autuação na esfera administrativa só será possível se o agente conseguir provar que o acusado teve a culpa, com intenção (dolo), ou não. Especialistas ainda lembram que, dentro do processo administrativo, hoje o acusado já tem o direito a recorrer, e alegar ausência de culpa.
Ex-presidente do Ibama e atual especialista do Observatório do Clima, a advogada Suely Araújo se preocupa com as possíveis implicações das novas regras no trabalho de campo. Segundo ela, ainda falta clareza sobre como será a aplicação. Um dos exemplos de fiscalização que poderá ser dificultado é o de rastreamento de cadeias produtivas, em que fiscais atuam sobre denúncias de ilegalidades nos mercados de madeira, soja, gado etc.
“Nessas operações, se fiscaliza desde quem financia a quem comprou produto de origem ilegal. São diferentes elos das cadeias fiscalizados. Mas, quando passa a exigir que o agente coloque os indícios de culpa de cada envolvido no processo, pode dificultar as operações. A operação é mais eficiente quando pega a cadeia toda”, diz Araújo.
Ele também cita preocupação com as operações remotas, feitas a partir de imagens de satélite. “O pressuposto é que quem tem a posse da terra tem a responsabilidade de cuidar, por isso o proprietário era autuado diretamente. Eu entendo que deveria continuar assim. Mas vão pressupor a culpa pela omissão de cuidado? É uma incógnita.”
Funcionário licenciado do Ibama, José Morelli, responsável pela multa ao então deputado Jair Bolsonaro por pesca ilegal em Angra, em 2012, critica que a nova regra “coloca na frente o que deveria vir depois”, e que isso dificultará o trabalho dos agentes.
“A simples observação do dano ambiental, por lei, me obriga a tomar uma atitude e a fiscalização se inicia com a lavratura do auto de infração. O dolo é comprovado, ou não, ao longo do processo. Justamente porque hoje, na Amazônia, por exemplo, é impossível o agente do Ibama apontar dolo ou culpa a cada situação concreta de dano ambiental. Isso afeta diretamente a atuação do fiscal no campo, causando insegurança ao agente e dando, de certa forma, recado positivo ao infrator.”
Pré-candidato a deputado distrital pela Rede, Morelli foi demitido da chefia do Centro de Operações Aéreas da Diretoria de Proteção Ambiental do Ibama em 2019, no terceiro mês de gestão de Bolsonaro como presidente. Desde então, foi transferido para setor de serviços burocráticos do órgão e passou a denunciar perseguição política.
Agora, o servidor pretende entrar com uma representação no Ministério Público Federal (MPF) contra a nova regra do Ibama, e que o órgão se manifeste sobre as mudanças.
“Em qualquer tipo de procedimento administrativo, é suficiente a existência de elementos indiciários para a lavratura do auto de infração. No caso ambiental, esses elementos se bastam, por exemplo, com imagens aéreas de satélite que demonstrem que houve desmatamento recente em área sob a responsabilidade de pessoa física ou jurídica”, diz trecho do parecer.
“A regra pode impactar nos monitoramentos de plataformas em alto mar, por exemplo. Diariamente são detectados vazamentos de óleo, por satélite ou aviões”, acrescenta Morelli.
Nova interpretação tem base em precedentes do STJ
A questão da “responsabilidade objetiva” nunca esteve totalmente expressa nas legislações ambientais e as interpretações para a aplicação da lei dependiam de pareceres internos do Ibama.
Segundo especialistas, a ausência de uma norma mais clara deu força à nova interpretação, que se baseia na tese da “responsabilidade subjetiva”, ou seja, na necessidade de comprovação do dolo ou culpa para autuação.
A lei 9605/1998, que dispõe sobre as infrações ambientais, fala de omissão e ação e, desde a sua promulgação, existe um debate sobre qual tese deveria prevalecer, explica Fabio Ishisaki, coordenador jurídico da Política por Inteiro (PPI), projeto que acompanha atos do governo e debates climáticos e socioambientais.
Em 2011, uma orientação jurídica da Procuradoria Federal Especializada (PFE) do Ibama dizia que “a imputação de responsabilidade pela prática do ilícito prescinde de dolo ou culpa, bastando que se demonstre a existência de ação ou omissão”, e esse era o entendimento em vigor até então.
No entanto, em 2020, um novo parecer da PFE trouxe interpretação contrária, que expressava “demandar a existência de dolo ou culpa do agente para caracterização de infração ambiental”.
Na quinta-feira da semana passada (14), um despacho do presidente do Ibama aprovou o parecer de dois anos atrás, dando caráter “vinculante” à orientação, ou seja, fazendo com que a interpretação da “responsabilidade subjetiva” seja aplicada a todo o órgão.
“Vem de décadas a polêmica, mas nos últimos anos ganhou mais força o lado da responsabilidade subjetiva. Não dá para falar que o assunto é juridicamente pacificado, porque há precedente dos dois lados nos tribunais superiores”, explica Ishisaki.
Mas, um julgamento recente, no STJ, que deu ganho ao recurso de uma empresa que contestava uma autuação ambiental, foi usado como precedente para o recente parecer.
Procurado, o Ibama afirmou que “a tese da responsabilidade subjetiva no processo administrativo sancionador segue jurisprudência do STJ, PGR e recomendação do TCU”. O órgão também negou que a nova regra irá diminuir a fiscalização e frisou que “o sensoriamento remoto continua permitido e inclusive foram ampliadas suas hipóteses”.
Para Ishisaki, o novo entendimento vai demandar mais tempo e esforço da parte dos agentes, o que, num contexto de déficit de servidores, acabará sendo um obstáculo para a fiscalização ambiental. Na sua opinião, o assunto poderia ser resolvido com normas mais objetivas, ou com uma interpretação da lei que leve em consideração os aspectos práticos do trabalho em campo.
“A discussão aqui é sobre como isso afeta a fiscalização, está colocando uma exigência ao agente que às vezes é até impossível cumprir. Acho que tem que sair um pouco do olhar puramente de precedente judicial e olhar para a prática do dia a dia, e pacificar melhor a questão de ação e omissão, como diz a lei.”
*Com AGÊNCIA O GLOBO