Em "O exercício da incerteza" (Companhia das Letras, 2022), o médico detalha os avanços da medicina, o medo da morte e a atuação como comunicador na televisão e internet (Foto: Ecoa)

O oncologista Drauzio Varella estudou em Nova Iorque, Amazônia, Tóquio, na extinta União Soviética e se formou médico no suntuoso prédio da Faculdade de Medicina da USP. Os outros 30 anos de carreira foram vividos em prédios à margem, mas também de dimensões colossais, como o antigo Carandiru e a Penitenciária Feminina da Capital. Aos 78, Drauzio acaba de lançar um novo livro para unir as duas experiências de vida.

Em “O exercício da incerteza” (Companhia das Letras, 2022), o médico detalha os avanços da medicina, a universidade, o ofício como médico, as cadeias, o avanço do crack nas periferias, o medo da morte, o cigarro, a família e a atuação como comunicador na televisão e internet.

Drauzio fechou a clínica para dedicar-se à comunicação e ao atendimento no Centro de Detenção Provisória (CDP) do Belém, em São Paulo (SP). O trabalho nas cadeias gerou sucessos literários como “Estação Carandiru”, “Carcereiros” e “Prisioneiras”. O novo título foi sugestão da editora e caiu bem. Para ele, o ofício exige aprimoramento em diferentes situações. “A medicina é um trabalho incerto. Duas pessoas nunca são exatamente iguais”.

Ironicamente, o médico que convive com a morte ainda tem certo medo dela. Para despistá-la, ele se mantém em movimento, correndo maratonas e atendendo os presos com quem tanto aprendeu.

Ainda hoje, afirma ser o único médico no CDP onde trabalha — e não pretende parar. “O trabalho na cadeia tem um sentido de urgência”, diz nesta entrevista à Ecoa.

Ecoa – O senhor diz que a medicina é um exercício de empatia. Como se manter empático no Brasil em 2022?

Drauzio Varella – A idade traz um pouco de sabedoria. Você passa por isso que estamos passando outras vezes. Já tivemos uma fase muito dura e terrível no Brasil com a ditadura militar, com AI-5, uma repressão brutal, execuções de inimigos, tortura de pessoas inocentes.
Nós temos uma fase melhor do que aquela. E essa dicotomia, essa divisão da sociedade, não vai durar muito tempo. Não existe mais espaço e tempo para a violência daquela época. As coisas vão se acalmar com o tempo, mas temos 30 milhões de pessoas com insegurança alimentar. São milhares de famílias. É muito duro sentir que não existe um esforço nacional para acabar com isso.

Ecoa – Então, a empatia se dá por essa compreensão de que as coisas passam?

DV – Acho que sim. Acho que a vida é essa aqui. É um grande privilégio viver nessa terra. Estou chegando aos 80 anos com uma condição física que não me limita. Posso viajar o país, vou e volto sem limitações. É um privilégio enorme, apesar de estarmos em uma situação complicada. A vida não é simples. Tem fases melhores e piores e a gente tem que ser, eu acho, agradecido quando está bem, vivo e por experimentar os prazeres que a vida e o corpo podem proporcionar. Procuro ter essa visão mais otimista por ter vivido tantos anos sem uma doença grave.

Ecoa – No novo livro, o senhor trata de como as pessoas começaram a buscar a felicidade, às vezes até pela medicação. Quais são os efeitos dessa busca e como ela é feita?

DV – A gente tem uma visão um pouco romântica da existência, uma ideia de que tem que estar feliz o tempo inteiro. A felicidade permanente é só na infância. Quando cresce a gente passa só uns dias muito felizes, como quando faz uma viagem, quando está com amigos… Uma vez escrevi na Folha de S. Paulo que a felicidade é como um pássaro arisco: mal pousa e já levanta voo. Você fica feliz, mas os pensamentos são desviados pela preocupação com cartão de crédito que vai estourar, a falta de dinheiro para pagar. A gente tem que se conformar que é assim, que em boa parte do dia a gente faz coisas que dão pouco ou nenhum prazer.

Ecoa – A pandemia tirou o estímulo dessa busca por felicidade?

DV – Tem sido uma coisa cansativa. A gente não conhecia esse estresse. Ver os amigos e os familiares correndo risco morte é um estresse. Estresse não é só pegar trânsito e se irritar — o que na verdade é um aborrecimento. O estresse de verdade é essa preocupação generalizada, que o tempo inteiro te deixa preocupado com o que vai acontecer. Eu acho que a pandemia fez aflorar isso de um jeito perigoso.

Ecoa – E tem remédio para essa sensação?

DV – Olha [suspira]. Tem gente que é mais equilibrada, apesar de sentir essa pressão. Uns fazem yoga e ficam tranquilos, outros passam um tempo desligados desses aparelhos diabólicos que infernizam a nossa vida. Eu não consigo nenhum desses métodos. Imito o que nossos antepassados faziam na época das cavernas. O cara saía da caverna, de repente dava de cara com o leão e só tinha duas alternativas: se atracar com o leão, ou sair correndo. Se ele saísse com vida, gastava todos aqueles mediadores do estresse, a respiração acelerada que desvia o sangue para os músculos. A adrenalina. Eu faço a mesma coisa. Corro longas distâncias, até ficar bem cansado. Me sinto muito mais tranquilo depois. A atividade física ajuda muito.

Ecoa – O senhor dedica um capítulo inteiro ao cigarro no seu livro, o que é curioso. O que você aprendeu com a dependência?

DV – Primeiro, me ensinou que a droga quebra o caráter do usuário. Você fica de joelhos. Eu comecei a fumar com 17 anos, dizendo que iria parar rápido. Assim, passaram-se 19 anos. Um tempo absurdo. O cigarro é uma droga absurda e faz as pessoas sofrerem muito. Tratei muitos amigos e amigas da adolescência com uma história de vida semelhante a minha. E agora temos as companhias de cigarro eletrônico. É o maior crime da história do capitalismo depois da escravidão! Não consigo achar outro crime semelhante que continue afetando tantas pessoas.

Ecoa – E o senhor fechou seu consultório há dois anos. Sente falta?

DV – Olha, eu gosto de atender. Gosto de examinar doente. Senti mais falta do [Centro de Detenção Provisória] do Belém quando não podia entrar mais lá durante pandemia. O trabalho na cadeia tem um sentido de urgência, pois não tem outro médico lá. A maioria dos CDPs não têm médico nenhum. Se eu não for na segunda-feira, sei que eles não terão atendimento. Percebi que esse trabalho lá é muito mais necessário do que o trabalho no consultório. Fui um dos primeiros oncologistas de São Paulo. Hoje, tem uma meninada ótima, formada em grandes centros internacionais. Posso ser substituído na clínica, mas na cadeia não é assim. Chega uma idade que você sente que precisa aproveitar o máximo do seu tempo. Então, onde é que eu vou ser mais eficiente e, consequentemente, feliz enquanto estiver em boa forma? Cheguei à conclusão que o mais importante seria me dedicar a educar sobre saúde, algo que fazia nas horas vagas e que poucos médicos tiveram a chance de fazer. Seria melhor atender a 20 pessoas que poderiam consultar um médico tão bom ou melhor do que eu, ou usar o programa de televisão à noite, a coluna na Folha, na Carta Capital, no meu site com 8 milhões de acessos, meus três milhões de inscritos no YouTube? É aí que tenho que atuar, não é verdade?

Ecoa – No livro, o senhor narra o medo da morte, mesmo lidando com ela várias vezes. Não tem jeito de se acostumar com essa ideia, mesmo?

DV – Lidei com morte na clínica e por violência na cadeia, especialmente no Carandiru. Eu tenho medo da morte violenta, claro, de alguém sacar um revólver contra mim. Mas quando a morte vem de um jeito inexorável, ela traz também um entendimento. Você se desliga da vida espontaneamente, a doença traz uma resignação. Chega um ponto que o corpo vira uma fonte de sofrimento e você começa a não ter capacidade de reação. Vi isso com meus doentes a vida inteira. Esse tipo de morte natural acho que a gente não tem como se preocupar. A morte por violência traz desespero. Nunca vi um morto por doença se debater em desespero. Chega a um ponto que reagir é inútil. Sabe, eu sou ateu e não tenho expectativas. Acho que vou morrer e acabou, deixo de existir. Aí me perguntam: a vida é só isso? É só isso, pô. Não tá bom?

Com informações do Ecoa / Uol