O grupo de especialistas recrutado pela ONU para avaliar a ciência sobre o clima divulgou hoje um novo relatório destacando o tamanho da população sob risco com o aquecimento global. “Entre 3,3 bilhões e 3,6 bilhões de pessoas vivem em contextos que são altamente vulneráveis à mudança climática”, diz o documento do IPCC (Painel Intergovernamental Sobre Mudança Climática).
Essa cifra, baseada em uma revisão científica conduzida por 270 especialistas, está no relatório do grupo de trabalho 2 do painel, que além de impactos e vulnerabilidades trata da adaptação a estes. Ele é um subcomponente do AR6 (6º Relatório de Avaliação), o principal documento do painel, parte de uma série que se renova a cada sete anos, aproximadamente.
Os impactos descritos como problemas ligados à interferência humana no clima no documento, incluem problemas como secas, inundações, fome e doenças.
O relatório avalia o nível de risco em diferentes cenários futuros de emissão, e mesmo no mais otimista deles (elevação da temperatura média global em 1,5°C até o fim do século, meta do Acordo de Paris para o clima), lista uma série de consequências irreversíveis.
Apresentado hoje em uma entrevista coletiva, o trabalho saiu acompanhado de um discurso com palavras duras do secretário-geral da ONU, António Guterres.
“O relatório de hoje do IPCC é um atlas do sofrimento humano e um indiciamento por fracasso na liderança climática” , afirmou. “Quase metade da humanidade está vivendo na zona de perigo, agora. Muitos ecossistemas estão num caminho sem volta, agora. A poluição desenfreada por carbono empurra os mais vulneráveis do mundo em uma marcha forçada para a destruição, agora. Os fatos são inegáveis. Essa abdicação de liderança é criminosa.”
A maior parte da população sob algum risco de sofrer consequências da crise do clima, segundo o IPCC, tem na água o seu maior ponto de fraqueza. Metade da população global enfrenta crises hídricas em parte do ano, e a mudança climática já tem boa parcela de culpa nisso. Quase um terço das pessoas estão em áreas vulneráveis por viverem em cidades ou habitações costeiras, onde o aumento do nível do mar e são ameaça potencializada por ressacas e tempestades.
Se os oceanos subirem mais 15 cm em média, descreve o relatório, o tamanho da população sob risco cresce 20%. Se subirem 75 cm, o número ameaçados dobra. Nesse cenário mais pessimista, o valor do patrimônio que se encontra sob risco de uma inundação até o fim do século pode chegar a US$ 14 trilhões.
No campo da saúde, os impactos se traduzem em um aumento nas doenças transmitidas por mosquitos ou pela exposição ao calor. O risco de fome se dá pelo impacto do clima na agricultura. O relatório também trata de biodiversidade, e reporta que metade dos seres vivos mapeados por biólogos está se deslocando para áreas mais frias, como montanhas e altas latitudes, em busca de clima melhor.
Descrição e prescrição
Desde que foi criado, em 1988, o IPCC tem adotado uma postura mais “descritiva” e menos “prescritiva” para problemas e soluções. Para cada relatório que publica, o painel produz um “Sumário para Formuladores de Políticas”. Cabe a autoridades de governo negociar formas de frear e remediar o aquecimento global em outro foro da ONU, a Convenção do Clima.
No atual documento, porém, o IPCC aponta muitas situações em que deixar de investir em adaptação não é mais opção a ser debatida, porque são inevitáveis.
“Nós nos preocupamos em não sermos prescritivos, mas ao mesmo tempo somos cidadãos do planeta”, diz o climatologista Hans-Otto Pörtner, co-líder do grupo 2 do IPCC. “Temos que nos equilibrar numa linha estreita em nossa mensagem final, e até podemos parecer prescritivos quando falamos da urgência do tema, mas no fim das contas o que fazemos é reiterar conclusões que saem das leis da natureza, porque a natureza reage à poluição que emitimos para a atmosfera.”
O AR6 é bem mais detalhado por região do que AR5, publicado em 2014. No tomo do grupo 2, há capítulos especiais para áreas mais críticas na mudança climática, incluindo pequenas ilhas, regiões polares, áreas montanhosas e florestas tropicais. Houve, por exemplo, um avanço em reconhecer que capacidade da Amazônia de reter carbono no chão está se reduzindo, pressionada pelo desmatamento e pela própria mudança climática.
“Este relatório incluiu agora, com alta confiança, que a parte sul da Amazônia se tornou um fonte líquida de carbono para a atmosfera na última década” , afirma Jean Ometto, pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e coautor do documento.
Desenvolvimento resiliente
O Brasil também aparece no relatório como particularmente vulnerável a impactos na agricultura, que sustenta boa parte da sua economia. “O aumento na precipitação média impactou positivamente a produção no sul da América do Sul, apesar de períodos de seca extremamento longos terem se tornado mais frequentes, afetando economias de grandes cidades do Brasil”, afirma o relatório.
Os extremos de estiagem, lista o IPCC, se alternam no Brasil com os extremos de chuva, que tem provocado mais morte e destruição nos últimos verões. O novo relatório do painel cita mais dos chamados “estudos de atribuição”, que buscam estimar quanto da mudança climática influencia eventos extremos.
“Não é uma coisa trivial atribuir um evento específico, como as chuvas que ocorreram recentemente em Petrópolis, à mudança do clima. Mas já é possível dizer com mais certeza que uma maior frequência desses eventos extremos está associada à mudança do clima” , explica Ometto.
O tema da adaptação a esses problemas tomou grande parte do novo relatório. O IPCC elaborou uma série de recomendações dentro de um conceito chamado “desenvolvimento climático resiliente”, em que soluções para os problemas precisam levar em conta as forças da natureza. Em meios urbanos, isso inclui políticas de habitação para desocupar áreas de risco, por exemplo. No campo, a adoção de sistemas agroecológicos e o fim do desmatamento são medidas importantes.
Financiamento
O IPCC também tomou a liberdade “prescritiva” de dizer aos formuladores de política que o dinheiro reservado para isso ainda não é suficiente. “Os fluxos financeiros atuais para adaptação, incluindo os de fontes privadas e públicas, são insuficientes e limitam a implementação de adaptação de opções, especialmente em países em desenvolvimento”, afirma o documento. Na opinião da vice-presidente do painel, a brasileira Thelma Krug, os governos precisam começar a se mexer.
“Já existe um fundo de adaptação há muito tempo, sob a Convenção do Clima, mas o que as agências financiadoras e os bancos sentem é que, embora possa existir dinheiro para adaptação, os planos nacionais são muito fracos”, diz a cientista. O trabalho que publicamos pode servir de base para melhorar esses planos e aumentar a chance de os países conseguirem financiamento.
O relatório do grupo de trabalho 2 do IPCC deu sequência ao do grupo 1, sobre a física do clima, publicado em 2021. O próximo documento, do grupo 3, deve ser publicado no início de abril, e tratará da mitigação da mudança climática por corte na emissão de gases do efeito estufa.
*Com Agência O Globo