O apresentador Galvão Bueno no hotel Grand Hyatt, em São Paulo (Foto: Eduardo Knapp / Folhapress)

Dono de uma das vozes mais conhecidas da TV brasileira, Galvão Bueno diz estar em processo de desmame. “Como eu crio gado e cavalo, sei bem como funciona. O desmame vai até um certo ponto. Depois, não tem mais jeito. Vai ter que comer pasto porque, aqui, o leite acabou”, compara.

O “leite” ao qual Galvão se refere é a narração de jogos esportivos. A última vez que comandou a transmissão de uma partida da seleção brasileira de futebol foi no duelo contra o Marrocos, em março de 2023, no YouTube, pelo seu canal GB. Já a sua última narração na TV Globo foi durante a Copa do Mundo de 2022. Após encerrar o antigo vínculo com a emissora, Galvão assinou um novo modelo de contrato com a empresa que vai até o fim deste ano.

Agora, o locutor se prepara para embarcar para a sua décima cobertura dos Jogos Olímpicos, em Paris. Desta vez, ele não vai narrar as competições das cabines de transmissão. “Será diferente”, afirma, em entrevista à coluna de Mônica Bergamo, realizada no hotel Grand Hyatt, em São Paulo. “Mas vai dar certo”, completa, em tom de confiança.

Galvão fechou uma parceria com o COB (Comitê Olímpico do Brasil) e com a Globo para apresentar uma série de programas diários desde a Casa Brasil, da qual será embaixador. O espaço será uma espécie de ponto de referência durante as competições, no Parc de la Villette. O conteúdo será transmitido na internet.

Com a Globo, o locutor participará da transmissão da cerimônia de abertura e fará uma participação diária no programa Central da Olimpíada, comandado por Tadeu Schmidt. Seu novo contrato com a emissora, desta vez na área de entretenimento, prevê que ele comande novas atrações. Em maio, ele começa a gravar o reality “Voz do Campo”, que pretende revelar um novo talento da narração esportiva.

Galvão diz que o mercado está dividido em quatro camadas de transmissão. “A gente tem a TV aberta, a TV fechada, os streamings pagos [plataformas como ESPN, GloboPlay, Star+] e os streamers [quem faz transmissões ao vivo na internet], grupo no qual me incluo agora. É uma nova TV, sem pagar, e isso está incomodando um pouco as TVs abertas”, avalia.

“Todos eles [streamers] se dão muito bem comigo, eu me dou muito bem com eles. Acho que é um espaço que tem que existir, mas eles falam uma porrada de palavrão. Não acho legal ficar falando palavrão em transmissão, não.”

“A minha primeira transmissão no canal GB, do jogo entre Brasil e Marrocos, passou de 11 milhões de visualizações simultâneas. É coisa para caramba, que nenhuma TV fechada dá.”

No seu contrato anterior com a Globo, de 2022, a única restrição de trabalho era com outras emissoras da TV aberta. “Quando ‘bum’, chegou esse negócio [de streamers] desse tamanho, [a Globo falou]: ‘Vem cá, vamos conversar de novo’”, conta.

Agora, no contrato firmado em 2023, a restrição também se estendeu a todas as plataformas —Galvão, inclusive, revela que declinou de um convite de Casimiro para transmitir um jogo do Flamengo, time pelo qual torce. “Não sei dizer se vai haver uma renovação do contrato com a Globo ou se eu vou me dedicar a esse novo mundo inteiramente.”

Galvão, com sua voz inconfundível, é expressivo ao responder às perguntas da entrevista. E conta causos de sua trajetória de mais de 40 anos de televisão com uma memória e atenção aos detalhes surpreendentes. Ele faz o ouvinte se sentir como se estivesse acompanhando mais uma de suas narrações.

Questionado sobre a cobertura mais difícil de sua carreira, ele não pensa duas vezes: o acidente e a morte de Ayrton Senna, de quem era muito próximo. O episódio completará 30 anos em 1º de maio.

“Foi muito difícil porque, como ninguém disse que ele teve morte cerebral no autódromo, senão não ia ter corrida, ficou aquela coisa: ‘Senna bateu! Bateu forte!’, lembra Galvão, imitando sua narração. “E foi muito forte, mas eu juro que eu esperava que ele saísse, se levantasse do carro, ou que o tirassem.”

“Tem uma coisa que não me sai da cabeça. Ele, ainda dentro do carro, mexeu a cabeça. E eu, querendo alguma coisa, disse: ‘Senna mexeu a cabeça, se movimentou. Será que está voltando?’. Tenho, hoje, a convicção de que aquilo foi um estertor da morte.”

Galvão conta que pediu ao seu colega Reginaldo Leme para, mais de uma vez, assumir a transmissão para que ele pudesse ir para o lado de fora da cabine em Ímola respirar e se recompor.

O apresentador recebeu a confirmação de que Senna não sobreviveria de Gerhard Berger, piloto companheiro de equipe do brasileiro. “Ele me chamou. Quando cheguei perto, fez um sinal balançando os braços e disse: ‘Já era'”, recorda. Eles foram ao hospital para onde Senna foi levado, em Bolonha, no helicóptero de Berger.

“A única frase dita a viagem inteira foi quando o Braguinha [empresário Antônio Carlos de Almeida Braga, que morreu em 2021] bateu na minha perna e falou: ‘É, amigo… Acabou a graça’. Ninguém tinha força para falar.”

No hospital, conversaram com o médico da F1 Sid Watkins. “[Ele disse]: ‘O coração está batendo porque ele é muito forte. Mas posso garantir que ele não está sofrendo e que não vai durar muito’.”

Já a cobertura mais emocionante foi o confronto entre Brasil e Itália, na final da Copa do Mundo de 1994, dois meses depois da morte de Senna. “Foi diferenciado. No momento de gritar: ‘Acabou, acabou! É tetra, é tetra!’, o Pelé estava do meu lado, berrando junto. Só com o passar do tempo que fui entender a importância daquilo. Hoje, 30 anos depois, um garoto que então nem era nascido passa no vestibular e grita: ‘É tetra, é tetra!’. Virou uma expressão de comemoração.”

“Deus me deu a bênção e me deu de presente os grandes momentos do esporte brasileiro nos últimos 50 anos. Alguns, difíceis. A morte do Senna foi, realmente, o maior drama. Mas o grande momento foi o tetra. Sempre fui um vendedor de emoções, um místico. Sou duro, sempre fui. Sempre fui crítico. Mas se eu fosse citar erros não ia caber numa página do jornal.”

Galvão diz ver o aumento de mulheres na liderança de narrações esportivas com “absoluta naturalidade”. “É claro que as mulheres foram segregadas no esporte, muitas sofreram durante muitos anos. Eu trabalhei com mulheres fantásticas. Mas, para mim, é uma questão de competência, de capacidade. Direitos absolutamente iguais. Não deve existir cotas [para elas]”, defende.

Em relação aos jogadores Robinho e Daniel Alves, condenados por estupro na Itália e na Espanha, respectivamente, Galvão afirma que os dois cometeram “um crime imperdoável”. “Como o racismo. O que está acontecendo com o Vini Jr. é uma coisa… Não dá nem para criar uma frase sobre isso, de tão horroroso que é”, diz ele sobre o brasileiro astro do Real Madrid.

Vini Jr. tem sido obrigado a conviver com frequentes ofensas na Europa —a lista inclui gritos de “macaco” proferidos nos estádios e uma simulação de enforcamento de um boneco com a camisa do craque .

Galvão conta que entrevistou o jogador em sua casa, na Espanha, uma semana antes desta conversa com a coluna. “Ele sofre com isso, claro, mas tem uma personalidade tão forte. Eu disse: ‘Vini, e se você for para a Premier League na Inglaterra?’. E ele respondeu: ‘Por que eu vou fugir disso? Tenho que enfrentar’”, detalha.

“Tem gente que fala que ele provoca quando ergue o braço fechado ao fazer um gol ou quando bota a mão no ouvido em um estádio onde já fizeram coro racista. A resposta do Vini foi fantástica: ‘Eles querem o quê? Que eu faça um gol e espere chegar no meu estádio para comemorar? Não, eu enfrento todo mundo’. Agora, por que é que é com ele? Não sei te dizer.”

O apresentador elogia a estreia de Dorival Júnior na seleção brasileira, mas critica a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) por ter deixado o time no comando de técnicos interinos por tanto tempo. “Não podia ter acontecido o que aconteceu. Foi uma gigantesca falta de respeito à história da seleção brasileira, à amarelinha do Zagallo, um gigante que nos deixou [em janeiro deste ano].”

Galvão já está com a cabeça em 2028, que ele enxerga como uma espécie de fim de ciclo. “A Olimpíada de agora já está fechada. Estou preocupado com a próxima, de Los Angeles. Quero voltar para o mesmo estádio em que eu fiz a minha primeira cobertura, em 1984”, diz. “Aí já vai dar para pensar em parar, né?”.

Mas, calma. Isso não significa que Galvão pretende deixar os trabalhos de vez. “Me aposentar? Jamais. Só no dia em que o homem me chamar lá”, diz, apontando o dedo em direção ao céu.

Com informações da coluna de Mônica Bergamo / Folha de S.Paulo