“Os dois têm culpa. A culpa é dos dois. Um permitiu, o outro deixou, foi permissivo. A culpa sempre é dos dois, a culpa nunca é de um”. Isso foi o que Andressa ouviu da promotora Izabella Figueira, em uma audiência na 9ª Vara de Família da Comarca do Rio de Janeiro, onde tramita o processo de guarda do seu filho. A promotora se referia aos conflitos entre a mulher e o ex-marido, de quem ela diz ter sofrido violência doméstica.
A criança tinha 3 anos de idade, e eles não entravam em acordo sobre como deveria acontecer as visitas paternas, já que Andressa se sentia ameaçada. A mulher havia relatado, logo no início da audiência, os episódios de violência que teriam acontecido quando era casada, além de perseguições depois da separação. Mesmo assim, ouviu da juíza Regina Helena Fábregas Ferreira que uma mulher pode “apanhar [do marido] mas ele pode ser um excelente pai”.
Quase cinco meses depois, Andressa foi novamente constrangida pela promotora. “A sua cliente escolheu o senhor Júlio para ser pai do filho dela”, afirmou Figueira em 2 de fevereiro de 2021.
Andressa interveio: “Eu não escolhi, doutora”. Nem a promotora, nem a juíza Leise Rodrigues de Lima Espírito Santo, que conduzia a audiência, se interessaram em entender por que Andressa havia dito isso. A promotora se limitou a questionar: “Foi Deus?”. E a juíza emendou: “Fez sozinha, o filho?”. A vítima não teve espaço para responder.
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Segundo Andressa, a criança seria fruto de um estupro. A informação, contudo, não constava nos autos do processo na data da audiência. Neles, via-se que Andressa já havia denunciado “relação sexual muitas vezes não consentida”, mas ela não deixara claro que a gravidez teria ocorrido por causa de um estupro.
Ainda que a mulher tenha sido vítima de violência doméstica, por lei, o pai segue tendo direito à convivência com o filho. Contudo, a forma que as autoridades se dirigiram a Andressa se caracteriza como agressão psicológica, segundo a titular do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher da Defensoria Pública do Ceará, Anna Kelly Nantua.
Ela analisou os vídeos das duas audiências e afirmou: “A mulher é colocada como responsável pelos atos que a deixaram naquela situação. Na verdade, não há que se falar em culpa. Ela é uma vítima de violência doméstica”.
Procurada por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público do Rio de Janeiro, a promotora disse que todos os processos de vara de família correm sob o segredo de justiça. “Assim, infelizmente não poderei prestar qualquer esclarecimento”.
Também procuramos as juízas Regina Helena Fábregas Ferreira e Leise Rodrigues de Lima Espírito Santo por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mas não obtivemos resposta até a publicação desta reportagem.
Relatos ignorados
A situação vivida por Andressa é corriqueira nas audiências das varas de família, de acordo com um mapeamento feito pela Defensoria Pública do Estado do Ceará. “A violência motivou o fim da relação amorosa e o processo, mas a mulher perde o protagonismo, e a denúncia original acaba silenciada”, afirmou Nantua.
O levantamento feito com base em processos originados no Nudem, em Fortaleza, mostra que não só a violência doméstica, mas também seu potencial ofensivo à integridade da mulher são esquecidos pelo Judiciário. Em todas as 630 ações analisadas, as vítimas mencionam a violência doméstica nos autos. Porém, das 205 em que houve acordo entre as partes, em apenas uma ação o juiz mencionou formalmente o abuso no termo de homologação. Em 71,7% das ações, também constavam pedidos de medidas protetivas, o que significa que a mulher, mesmo após a separação, ainda temia que o agressor lhe fizesse algum mal – risco que não se encerra com um mero acordo no papel.
Quando evita falar da violência sofrida pela mulher ao tratar da guarda dos filhos, o Judiciário tenta dissociar o indissociável, explicou a defensora Nantua. “As marcas da agressão saem do papel, mas não da vida e da mente daquela mulher. Para ela, é impossível separar. Existem marcas psicológicas e, muitas vezes, físicas, que estão instaladas nela”.
Uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada divulgada em 2019 avaliou o atendimento prestado pelo Judiciário às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Com base na observação de audiências, a conclusão foi de que as vítimas têm pouco espaço de fala e seus relatos são ignorados.
Embora as mulheres não fossem interrompidas, e “aquelas mais espontâneas” conseguissem se manifestar “para além daquilo que era perguntado”, a pesquisa identificou “uma espécie de indiferença” dos membros do sistema de justiça. Eles não demonstram interesse pelo que é dito. Em vez disso, “se ausentam da audiência, distraem-se em seus computadores ou celulares, não estabelecem contato visual, nem pedem esclarecimentos”. Isso pode ser constatado em uma das audiências virtuais a que tivemos acesso. Em alguns momentos, a juíza Ferreira e a promotora Figueira desligaram suas câmeras.
Andressa denunciou as juízas Ferreira e Espírito Santos ao CNJ, por “extrema parcialidade” e descuido com o seu caso, mas o ministro Luiz Fux determinou o arquivamento da ação, justificando que Andressa utilizou uma via inadequada. Em vez de Arguição de Suspeição e Impedimento, a denunciante deveria ter pedido abertura de Processo Administrativo Disciplinar. Ela entrou com o novo pedido em março de 2023, dessa vez destacando violência institucional, psicológica e abuso de autoridade. Agora, aguarda resposta do CNJ.
A pesquisa do CNJ e do Ipea evidenciou que o perfil dos magistrados é decisivo para a qualidade do atendimento prestado às mulheres. Eles foram classificados em três categorias: resistentes, moderados ou comprometidos. O relatório aponta que um processo que tramita em vara não especializada, conduzido por um magistrado comprometido, tende a ser mais qualificado do que aquele que corre em vara especializada, mas é conduzido por um juiz resistente, por exemplo. “Apesar de o fenômeno da violência doméstica usualmente seguir uma dinâmica pouco variada, a resposta do Judiciário é muito heterogênea, a depender de fatores pessoais e institucionais”, diz o documento.
A promotora Figueira também foi denunciada ao Conselho Nacional do Ministério Público. Em julho de 2023, o corregedor Oswaldo D’Albuquerque determinou “instauração de reclamação disciplinar visando apurar os fatos”.
‘Não tentei te matar’
Andressa e Júlio tinham pouco mais de um ano de relacionamento quando ela foi à delegacia pela primeira vez, em novembro de 2015, registrar queixa por ameaça, lesão corporal e injúria. De acordo com o boletim de ocorrência, ele a teria chamado de vagabunda e prometido arrebentá-la se a visse “com outro na rua”.
Ele ainda a teria puxado pelo braço e a empurrado em direção a uma mesa. O exame de corpo de delito constatou que as manchas roxas e escoriações no antebraço direito, na perna e no tórax eram compatíveis com o que Andressa narrou no registro de ocorrência.
Em 2016, Ester Andrade era vizinha do casal. Ela morava no apartamento de baixo e “de tempos em tempos” se assustava com o barulho de coisas quebrando. “Parecia que ia furar o teto e, a qualquer momento, as coisas cairiam na nossa cabeça. Eu estava grávida e foi muito ruim ouvir aquela loucura”, disse.
Os vizinhos chegaram a chamar a polícia em uma das ocasiões, mas o casal disse aos policiais que estava tudo bem. “Depois, quando nos encontrávamos, eu via na cara da Andressa a vergonha estampada, mas nada era dito. Com certeza ela tinha medo dele”, acredita Andrade.
Em um e-mail de fevereiro de 2016, anexado ao processo, Júlio admitiu suas atitudes violentas. Ele havia quebrado várias coisas do apartamento e jogado uma lata de verniz em direção à Andressa, quase atingindo seu olho. “Você sabe que não tentei te matar. Perdi a noção quando estourei a lata na parede, mas me machuquei também […]. Me perdoe por ter te feito mal e por ter te machucado”, ele escreveu. Segundo Andressa, o estupro que teria gerado a gravidez aconteceu alguns meses depois disso.
Uma amiga de mais de 20 anos, que pediu para não ser identificada, me disse que Andressa rompeu o silêncio sobre o que sofria na relação depois do estupro que conta ter acontecido em 2016. Segundo essa amiga, a mulher entrou em contato com ela e desabafou tudo que sofrera calada até então.
Com a gravidez, os dois reataram o relacionamento e casaram em setembro de 2016, mas a violência continuou. Segundo a amiga, Júlio queria que Andressa abortasse. Em uma mensagem de WhatsApp que consta em um dos processos de violência doméstica, ele disse para a mulher tirar logo “essa merda que veio de mim”, mas ela se recusou.
A separação definitiva aconteceu em 2019. Segundo Andressa relatou no processo, ela teria descoberto ser violentada enquanto estava dormindo, o que lhe deu forças para tomar a decisão após quatro anos de um relacionamento de aparências. Ela suspeita que Júlio a drogava, pois “acordava diversas vezes com sêmen em várias partes do meu corpo”. Ela mostrou no processo uma conversa de WhatsApp de janeiro de 2019, antes da separação, em que Júlio disse: “Te encoxei com o pau duro e você nem sentiu”.
Outro motivo, segundo ela ainda mais forte, foi descobrir que Júlio levava pessoas para usar drogas dentro de casa, na frente do filho. Em uma troca de mensagens também anexada ao processo, o ex admitiu o ocorrido. “Um dia, ele foi buscar meu filho na escola e, assim que eu abri a porta, senti o cheiro. Ali, eu senti Deus falando comigo. De que adianta aturar ser estuprada e tudo o que vinha passando, se meu filho estava em risco?”.
Romper com o ciclo de violência é o primeiro grande passo que uma mulher dá quando denuncia seu agressor. Mas ela ainda vai ter que enfrentar o julgamento, a culpabilização ou o descrédito de muitas pessoas, inclusive de alguns membros do sistema de justiça.
Para a defensora pública Nantua, titular do Nudem, a cultura machista faz as pessoas terem dificuldade de enxergar a vítima como tal. “A Lei Maria da Penha e várias legislações e políticas públicas que surgiram depois dela ajudaram, mas ainda precisamos avançar, inclusive no amparo e acolhimento à mulher que denuncia uma violência, para que ela nunca se sinta culpada”.
Andressa entrou com o pedido de guarda definitiva e afastamento do filho do ex em julho de 2019. Foi nesse processo que aconteceram as audiências em que, como caracterizou a titular do Nudem, ocorreram as agressões psicológicas. A vítima já tinha conseguido uma medida protetiva de urgência por violência doméstica. A decisão era de distanciamento físico e eletrônico por 90 dias, mas isso valia apenas para ela, e as visitas de Júlio à criança foram mantidas.
Ele chegou a ser preso em outubro de 2019, após denúncia de que continuava perseguindo Andressa, tanto na escola do filho, quanto por mensagens. Foi solto 72 dias depois, com tornozeleira eletrônica. Em fevereiro de 2020, contudo, foi absolvido da acusação de violência doméstica.
Em outubro de 2021, um inquérito policial que investigava a acusação de estupro concluiu que “o fato de a vítima ter sofrido violência doméstica ficou claro”, mas não havia “indícios suficientes de autoria e materialidade” do estupro, e o caso foi arquivado.
Sem medida protetiva contra si e livre das denúncias criminais, Júlio alegou estar sendo vítima de alienação parental, porque Andressa não entrega o filho para as vistas paternas. Em junho de 2023, ele pediu inversão da guarda “para que sejam restabelecidos os laços paterno filial, que vem sendo destruídos por um capricho”.
A juíza Ferreira não atendeu ao pedido. Ela justificou que é necessário analisar melhor a situação “antes de aplicação de medida mais drástica” – mas o processo ainda não acabou.
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