No ‘Artigo de Domingo’ de hoje, o advogado Felix Valois conta a história da irmã Euzébia, uma freira com imaginação tão fantástica quanto absurda sobre os perigos do monstro a quem aprendeu chamar de comunismo. Um ‘causo’ que retrata a realidade muito mais comum do que uma sociedade sadia deveria admitir.
Anticomunismo (Por Felix Valois)
À simples audição da palavra “comunismo” (ou seus derivados), a moça entrava em estado de pânico e tinha que ser socorrida com sais aromáticos para evitar um delíquio. Não que ela se preocupasse com a propriedade dos meios de produção ou com a distribuição de renda. Nada disso. Comunismo para ela não era uma doutrina socioeconômica oposta ao regime capitalista. No seu imaginário, tratava-se apenas da encarnação da besta do Apocalipse, capaz de levar a humanidade à extinção pura e simples, por via da prática de atrocidades indescritíveis. O estupro de freiras e a degustação de cérebros humanos infantis, por exemplo, eram as atividades preferidas dos comunistas, conforme afirmava com a mais absoluta convicção a nossa heroína, de nome Euzébia, produto perfeito e acabado da Guerra Fria e vítima de massiva propaganda.
Alie-se a isso a formação intensamente religiosa da moça, interna que fora em colégio católico. Sua professora de catecismo, Irmã Eugênia, não se cansava de repetir nas aulas diárias, que todo cuidado era pouco com os comunistas porque estes, insidiosos e hipócritas, não perdiam nenhuma oportunidade de se infiltrar mesmo nos lares mais bem estruturados. “Comunista não é gente”, bradava com ênfase a boa freira, sempre disposta a contar um pesadelo recidivo que a atormentava durante as noites, depois das orações na capela. Era assim a alucinação: em fila, as freiras se dirigiam à igreja para o serviço das matinas. Na semiobscuridade da noite de lua minguante, eis que lhes é dado divisar, na porta principal do templo, uma horrenda e gigantesca figura, misto de homem e dragão. Ajoelham-se as freiras, em oração e em prantos, sem conseguir desviar as vistas do monstro, que lançava fogo pelas narinas. A prioresa, num rasgo de coragem e fé, ergue-se e proclama: “Somos filhas de Deus e esposas de Cristo. Quem és tu, infame criatura, que ousas atormentar a nossa paz?” Não era uma voz o que se ouviu em resposta. Era, antes, um grunhido pavoroso, roufenho e malévolo, a dizer: “Ora, quem sou. Sou o comunismo e não tardará o momento em que vereis desabar sobre a vós toda a minha ira destrutiva e avassaladora”. Como veio, assim se foi a aparição e Irmã Eugênia despertava entre suores frios e um medo desumano.
Por cima de tudo, a nossa Euzébia não era figura que primasse por dotes de beleza física. Os mais inclementes diziam mesmo que ela era feia como a justiça de Tefé. Tendo escolhido a enfermagem como profissão, não lhe foi difícil compreender a natureza de certas manchas que lhe apareceram na pele. Era vitiligo. Socorreu-se, como era natural, dos serviços de um dermatologista de sua confiança que, após lhe explicar a natureza e a evolução da doença, teve a modéstia de lhe afirmar que, em Cuba, ela poderia encontrar tratamento mais adequado e mais avançado. Foi o mesmo que cutucar o cão com vara curta. A moça ficou uma fera e, dedo em riste, vociferou para o esculápio: “Admiro-me do senhor, doutor. Conhecendo-me, como o senhor me conhece, ter a ousadia de sugerir que eu, esta serva de Deus, vá me submeter a tratamento com aqueles comunistas (o sinal da cruz veio em seguida). Deus me livre. Antes uma boa morte do que permitir que um barbudo nojento daqueles toque no meu corpo”.
Era inevitável: Eusébia se tornou membro da TFP. Essa organização (Tradição, Família e Propriedade) era o que podia haver de mais cretino e reacionário na segunda metade do último século. Desfraldando agourentas bandeiras pretas, saíam em bandos pelas ruas, a fazer pregações e a visitar famílias, tudo com o intento primacial de prevenir a todos contra os perigos do comunismo. Nessa faina, entra o grupo de fanáticos na humilíssima residência de uma velha, num dos bairros periféricos de Manaus. Chão batido, desprovida de qualquer superfluidade, a casinha era a própria imagem da pobreza, raiando a miséria. O porta-voz do bando exorta a velhinha: “Minha boa senhora, tenha muito cuidado com o comunismo”. Sentada num caixote de madeira, a anciã indaga: “O que é comunismo?” A resposta não se fez esperar: “É um bando de malvados que não tem piedade de ninguém. Eles tiram o que é da gente para distribuir e não pagam nada”. A réplica foi mortal: “Tomara que já venha, então, esse tal de comunismo. Pode ser que eu acabe ganhando uma cadeira de balanço”. Pano rápido. A horda deu marcha a ré e foi atormentar em outra freguesia.