A nove meses da COP30 (30ª Conferência da ONU das Mudanças Climáticas), em Belém, a capital paraense acelera os preparativos para receber o maior evento do mundo sobre o combate ao aquecimento global. Mas, entre as obras previstas, algumas entram em contradição com o próprio objetivo da conferência.
É o caso de dois projetos apresentados como de mobilidade, mas que, na prática, favorecem o uso de carros particulares em vez de transporte público, e ainda atingem áreas florestais preservadas. Os planos de duplicação da rua da Marinha e de construção da avenida Liberdade visam diminuir os engarrafamentos entre Belém e sua região metropolitana.
“Tem obras que não têm nada a ver e que, para mim, são altamente contraditórias sob a perspectiva da agenda da COP e das mudanças climáticas. São obras rodoviaristas e a política para o carro a gente sabe como é: quanto mais espaço você der para o carro, mais carros vai ter”, aponta a diretora da UFPA (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará), Roberta Rodrigues, que integra um grupo de pesquisa do CNPQ sobre os impactos de grandes eventos para as cidades-sede, com foco na COP30 em Belém. “E a gente sabe ao que elas estão atreladas: a interesses bem específicos do mercado imobiliário e de grupos específicos daqui”, afirma.
Segundo especialistas, as obras não apenas serão irrelevantes para a realização da COP, como ainda pioram a adaptação da capital paraense às mudanças climáticas, ao diminuírem as áreas verdes da metrópole e gerarem aumento das emissões de CO2 pela maior queima de combustíveis. O arquiteto e urbanista Lucas Nassar constata que a sustentabilidade não foi o fio-condutor dos projetos de Belém para realizar a conferência, com financiamento do Ministério do Planejamento e Orçamento, do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e de Itaipu Binacional.
Nassar é diretor-geral da organização Laboratório da Cidade, que ajuda as cidades amazônicas a se adaptarem ao aquecimento do planeta e faz parte do Comitê COP30. A coalizão de 99 organizações mapeou a relação entre importância das obras e a sustentabilidade dos projetos. O estudo conclui que poucos são, ao mesmo tempo, necessários e “verdes”.
“A gente não pode dizer que não houve, mas está muito aquém do que nós esperaríamos de um evento cujo tema é mudanças climáticas. Tem muita obra e muito investimento que está sendo feito que não tem nenhuma compatibilidade com a nova agenda urbana sustentável”, lamenta.
Como bons exemplos, ele cita a construção do Parque da Cidade, local onde a conferência será realizada e legado para atividades culturais e de lazer em Belém, a revitalização do Porto do Futuro 2, no centro da capital, e a renovação da frota de ônibus municipais – com 700 modelos elétricos ou padrão Euro 6, até 20% menos poluentes do que os que rodam atualmente na metrópole.
Animais e quilombo ameaçados por estrada
Por outro lado, o traçado da avenida Liberdade corta nada menos do que uma APA (Área de Proteção Ambiental), com mata nativa da Amazônia. “O impacto é gigantesco, numa área que é uma APA e na lei da APA diz que não pode ter. Não poderia. Você compromete um manancial, áreas onde vivem comunidades tradicionais, quilombolas”, salienta Roberta Rodrigues. “Sem falar que é uma área que vai ser rasgada ao meio e, de um lado como do outro, dizem que não vão ter propostas de uso dessas áreas a médio prazo, sendo que vão fazer uma rodovia ali, ao longo? Não existe isso.”

A pouco mais de um quilômetro da futura avenida, com quatro pistas e mais de 13 quilômetros de extensão, vive uma comunidade tradicional no quilombo do Abacatal. Uma análise de impacto ambiental feita pelo governo estadual em 2023 identificou dezenas de espécies de répteis, aves e mamíferos que a estrada poderá “afugentar”, com “risco de atropelamentos”.
“Para os animais aquáticos poderá haver perda ou morte devido a possível alteração da qualidade da água nos rios e igarapés gerados pelos eventos indiretos de erosão ou ainda podem estar relacionadas a descartes de efluentes”, diz o relatório.
O estudo aponta ainda que três espécies de flora e quatro de aves potencialmente atingidos pelas obras são ameaçados de extinção, entre elas o tucano-de-papo-branco, o tucano-de-bico-preto, o choca-preta-e-cinza e o maracanã.
Obra foi embargada
Já o prolongamento da rua da Marinha, num total de 3,4 quilômetros entre as avenidas Augusto Montenegro e Centenário, nas proximidades do aeroporto, atende a uma reivindicação antiga de militares instalados na região. Para duplicar a via, o governo do estado está desmatando uma área de vegetação às margens da rua.
No ano passado, a obra chegou a ser embargada pela Justiça, após uma ação do MPE (Ministério Público Estadual), mas o Tribunal do Pará acabou autorizando a sua continuidade.
“Os militares, as diferentes forças, têm feito isso de uma maneira que eu considero muito irresponsável em relação à cidade, porque eles negociam essas áreas de reservas verdes, que têm uma importância ambiental para Belém gigantesca, e que depois viram shopping center, condomínio fechado de alto padrão”, constata Rodrigues.
Os dois urbanistas mencionam ainda o plano de canalização da avenida Tamandaré, na área central. A proposta de criação de um parque linear ao longo do canal aposta em mais concreto, sem vegetalização, e desconsidera o potencial de mitigação dos riscos de inundações.
“A gente está perdendo uma grande oportunidade de mudar alguns padrões, e usar não apenas a oportunidade em termos de captação de recursos – porque Belém nunca teve tanto dinheiro sendo investido ao mesmo tempo como agora -, mas para a gente fazer a mudança de chave que toda e qualquer cidade vai precisar fazer”, frisa a professora da UFPA.
Consultados pela reportagem RFI, o governo do Estado e a Secretaria Extraordinária da COP30, ligada à Casa Civil, não responderam aos pedidos de entrevista.
