Mesmo sem apresentar documentos exigidos por lei, fazendas na Bahia têm obtido autorização do governo estadual para desmatar. As liberações são dadas até em áreas protegidas por lei e outras em que há disputa pela posse do território e incluem previsão de uso de técnicas proibidas, como cães de caça para afugentar a fauna.
As irregularidades no desmate legal na Bahia são apontadas pelo Imaterra (Instituto Mãos da Terra) que, em parceria com a UFBA (Universidade Federal da Bahia), analisou as ASVs (Autorizações de Supressão da Vegetação) emitidas pelo Inema, órgão ambiental do estado, nos últimos quinze anos. A pesquisa é parte da iniciativa Tamo de Olho, que também conta com a parceria do WWF-Brasil e do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).
Entre 2007 e 2021, o governo da Bahia autorizou o desmate de 992.587 hectares de vegetação nativa. A maior parte da área de desmate legal (80%) está no oeste baiano e dá lugar, principalmente, a cultivos de soja, milho e algodão.
O grupo de pesquisadores selecionou uma amostra de 16 pedidos de autorização para desmate no oeste baiano em áreas de conflito social ou ambiental -como sobreposição com áreas protegidas ou com territórios de comunidades tradicionais.
O estudo, publicado nesta quinta-feira (4), aponta irregularidades em todos os processos analisados.
Entre os 21 tipos de falha nos processos administrativos estão a ausência de documentos exigidos por lei federais e estaduais. As fazendas têm obtido autorização para desmatar mesmo sem aprovação do seu Cadastro Ambiental Rural, previsto pelo Código Florestal.
Através de imagens de satélite, o projeto conferiu as informações prestadas pelas fazendas e encontrou divergências que não foram questionadas pelo órgão ambiental, como, por exemplo, a existência de APPs (Áreas de Preservação Permanente) não declaradas pelas propriedades nos seus cadastros ambientais.
Segundo o Código Florestal, as APPs devem ser mantidas em margens de rios e nascentes, assim como em topos e encostas de morros, e têm a função ambiental de proteger os recursos hídricos -usados em larga escala pelo agronegócio e alvo de disputa no oeste baiano.
A análise de imagens de satélite também identificou áreas abandonadas em fazendas que solicitaram autorização para novos desmatamentos. Segundo o artigo 28 do Código Florestal, “não é permitida a conversão de vegetação nativa para uso alternativo do solo no imóvel rural que possuir área abandonada”. Os pareceres técnicos do Inema, no entanto, não citam o entrave e autorizam a supressão da vegetação.
A pesquisa ainda avaliou o conteúdo dos inventários florestais e dos planos de afugentamento e de resgate da fauna, ambos exigidos para obtenção da ASV.
Para afugentar a fauna da área a ser desmatada legalmente, o plano entregue por uma fazenda propõe o uso de cães de caça. A prática é proibida pela Lei de Crimes Ambientais, mas foi aceita pelo Inema.
Já o outro plano apresentado sugere o uso de ratoeiras para captura da fauna. Segundo o estudo, a prática não é recomendada por lesionar os animais capturados, podendo levá-los à morte. Os métodos não foram questionados pelos pareceres técnicos do órgão ambiental da Bahia.
Os inventários florestais também apresentam falhas básicas, como a descrição de vegetação de uma área distinta daquela que é objeto da ASV. Alguns inventários citam espécies que são ameaçadas de extinção, mas não explicitam essa informação, nem planejam como mitigar impactos.
Já o documento de outra fazenda classifica uma espécie em uma categoria inexistente: “quase ameaçada”. O documento cita uma espécie de nome desconhecido e sem registro no Banco de Dados da Flora do Brasil.
Em outro caso, das 30 espécies identificadas no inventário, cinco não apresentam distribuição para o estado da Bahia e uma não tem distribuição para o Brasil.
Outra esfera de conflito analisada pelo estudo mostra que as autorizações para desmatamento foram concedidas em casos onde há disputa de território e evidências de grilagem, com sobreposições de áreas.
Em uma fazenda, o estudo aponta que “a área da ASV está dentro da Área de Proteção Ambiental Estadual do Rio Preto, mas a área da propriedade está localizada dentro do Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba”.
Outras três apresentam sobreposição com territórios de comunidades tradicionais. Em uma delas, há uma ação discriminatória em curso na Justiça que busca esclarecer o direito sobre as terras reivindicadas por quatro comunidades geraizeiras. Ainda assim, no último ano a fazenda recebeu uma autorização para desmatar 24 mil hectares de vegetação.
“A autorização massiva de supressão de vegetação nativa foi incorporada como uma política de Estado”, conclui o estudo.
“A ausência de declaração do governo também pode configurar uma declaração implícita de política pública, como uma política tácita”, diz.
A Folha de S.Paulo contatou o Inema e a Secretaria do Meio Ambiente da Bahia por telefone e por email. A assessoria de comunicação retornou os contatos, mas não respondeu sobre a emissão de ASVs até a publicação da reportagem.
*Com Folhapress