A iminente aposentadoria da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, acelerou o processo de votação de processos relacionados a temas tão importantes quanto delicados na pauta de votações da Corte. Dentre eles está a descriminalização do aborto provocado até a 12ª semana de gestação , um assunto que divide fortemente a sociedade brasileira.
O tema foi pautado na Corte próximo ao Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe, celebrado em 28 de setembro. Caso a medida seja aprovada, o Brasil será mais um dentre vários países latinoamericanos, como México , Argentina e Uruguai , entre outros.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 447 , movida pelo Anis Instituto de Bioética, e pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pede que a interrupção voluntária da gravidez deixe de ser considerada um crime sob o argumento de que a penalização contraria outros preceitos fundamentais da Constituição.
De acordo com a ADPF, proibir o aborto nas primeiras semanas vai contra os princípios da dignidade da pessoa humana , da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas.
Dados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021 mostram que uma em cada sete mulheres brasileiras com idade próxima dos 40 anos já realizou pelo menos um aborto em sua vida.
Dentre as mulheres que abortaram, 52% tinham 19 anos ou menos na época em que o aborto foi feito. Além disso, a maior parte das mulheres que abortaram mais de uma vez têm um perfil específico: negras, em situações de vulnerabilidade social ou pobreza.
O levantamento ouviu 2 mil mulheres em 125 cidades brasileiras, sob a coordenação da antropóloga e professora da Universidade de Brasília, Débora Diniz, do professor visitante da Columbia University, Marcelo Medeiros, e do professor da Universidade Estadual do Piauí, Alberto Madeiro.
Atualmente, a Lei Nº 2.848, que data do ano de 1940 criminaliza o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento com até 3 anos de detenção. Provocar um aborto em uma gestante sem o consentimento dela prevê uma pena de 3 a 10 anos de reclusão. Com consentimento, a pena vai de 1 a 4 anos de reclusão.
Nos casos em que “gestante não é maior de 14 anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência” a pena é maior.
A punição também aumenta em até um terço se o procedimento de aborto causar lesão corporal grave. Caso a gestante venha a óbito, a pena é dobrada. A lei brasileira só não pune o aborto quando a gravidez resulta de um estupro ; se o procedimento for a única maneira de salvar a vida da mulher ; e nos casos de fetos com anencefalia .
Além de ocupar a presidência da Corte, Rosa Weber também é a ministra relatora da ADPF 447. Às vésperas da aposentadoria , a presidente do STF liberou a matéria para votação no plenário virtual e deu parecer favorável à descriminalização do aborto até a 12ª semana.
Rosa alega que “o início da vida não faz parte do âmbito jurídico” , e que não há consenso sobre quando a vida humana se inicia entre os campos da filosofia, religião, ética e da ciência, obrigando o judiciário à busca de “consensos mínimos” para balizar suas decisões.
Ela argumentou que “Não há como falar em proteção do valor da vida humana sem igualmente considerar os direitos das mulheres e sua dignidade em estatura de direitos fundamentais e humanos”.
Além disso, Rosa também defende ser essencial reformar as leis “restritivas” que “criminalizam” as decisões das mulheres sobre sua própria “liberdade reprodutiva”, tratando a problemática no âmbito da saúde pública e planejamento familiar.
Após o voto da relatora, o ministro Luís Roberto Barroso pediu destaque para a ação. Ou seja, solicitou a suspensão da votação para que ela saia do plenário virtual e seja avaliada presencialmente, na sede do Supremo Tribunal Federal, devido à relevância e delicadeza do tema.
“Cabo de guerra”
A arguição chegou ao STF há mais de 6 anos, e só recentemente irritou boa parte do Poder Legislativo, em especial o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD), que tem reclamado de “interferência indevida” do Judiciário .
A reclamação aponta especialmente para temas como a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal , a tese do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas e, mais recentemente, a descriminalização do aborto.
No último dia 19 de setembro, o senador Eduardo Girão (Novo-CE) subiu ao plenário afirmando que o julgamento da ADPF 442 no Supremo “interfere de maneira abusiva” nas prerrogativas do Legislativo. Ele também disse que no dia 8 de outubro uma sessão especial do Senado vai debater a ação analisada pelo STF.
Na visão de Priscila Lapa, doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), esse comportamento do Legislativo já era previsível diante dos resultados das últimas eleições, que resultaram num Congresso mais conservador em temas morais, além do “cabo de guerra” de competências entre os Poderes da República.
“A gente não consegue resolver certas questões no âmbito das várias instituições políticas onde isso deveria ser resolvido, acaba que ‘transborda’ e o Supremo acaba legislando em matérias em que, teoricamente, ele só deveria ser acionado para revisar se aquilo está de acordo ou não com a Constituição”, explicou a cientista política.
Priscila Lapa também pontua o ganho de força e poder decisório do Legislativo brasileiro nos últimos anos, tanto em direção ao Executivo, quanto ao Judiciário, o que corrobora para os ataques e politização da atuação do STF.
“Esse ataque orquestrado que se faz ao Supremo traz ele para a política, para que se diga que ele tem lado. Que é politizado não apenas por ação dos próprios atores do Supremo, mas também por essa tentativa de ampliação de força por parte do Legislativo”, disse a doutora em ciência política.
Diante desse cenário, Priscila aponta que mesmo com parte do bloco conhecido como “centrão” tendo entrado formalmente na base do governo Lula, a divisão da opinião pública , o reacionarismo e a falta de consenso entre os membros do Congresso tornam impossível ter segurança para determinar se há ou não chance de aprovação de alguma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que endureça mais ainda a legislação que trata do aborto no Brasil.
“Ao mesmo tempo em que tem um esvaziamento bolsonarista, eles não foram embora. Por outro lado, tem um governo que se elegeu com uma maioria frágil no Congresso e não consegue ainda impor claramente seu viés. Em outros tempos, diria que era muito remota a possibilidade de uma pauta dessa pudesse vingar, entrar em votação. Hoje, eu não diria que é tranquilo passar, mas não está descartado porque o Legislativo tem respaldo da opinião pública para pautar temas dessa natureza.”