Quando a Polícia Federal do Paraná detonou uma operação sobre tráfico internacional de drogas, em novembro de 2020, Heverton Soares Oliveira, o “Grota”, sequer era alvo dos agentes. Mesmo assim, segundo a PF, ele achou melhor se esconder em um garimpo ilegal de ouro em Itaituba (PA), a 3 mil quilômetros de Curitiba.
Até aquela investigação, Grota parecia apenas um empresário de sucesso no Pará, com investimentos em fazendas, gado e mineração. Mas seus negócios no município mais garimpeiro do Brasil já estavam no radar das autoridades.
Grota entraria de fato na mira da PF em outra operação, a Narcos Gold, no ano seguinte. Ele e um piloto de avião apontado como seu sócio – e que chegou a ser preso em 2004 acusado de prestar serviços ao traficante Fernandinho Beira-Mar – controlariam dezenas de aeronaves e pistas clandestinas usadas para o transporte de ouro e cocaína.
As investigações da PF jogam luz sobre o emaranhado de conexões entre traficantes, garimpeiros, policiais e empresários suspeitos de envolvimento com os chamados “narcogarimpos”.
Esse modelo foi adotado por cartéis de drogas na Amazônia para lavagem de dinheiro por meio da exploração de ouro – um mercado com falhas de fiscalização e brechas para práticas criminosas.
Para desvendar essas relações, a Repórter Brasil seguiu o rastro de dez operações da PF deflagradas nos últimos cinco anos e mergulhou em mais de 17 mil páginas de documentos.
Os agentes investigaram um total de R$ 27 bilhões em bens e negócios suspeitos, prenderam 225 pessoas e pediram a apreensão de 236 aeronaves. No entanto, os processos se arrastam na Justiça.
É o que acontece com as denúncias envolvendo Grota, apontado como líder de organização criminosa e chefe de narcogarimpos pela PF. Depois de nove meses foragido, o empresário derrubou na Justiça um pedido de prisão e recuperou aeronaves apreendidas. Hoje, responde às acusações em liberdade.
A defesa de Grota chama o inquérito da Narcos Gold de “estória com aspectos mirabolantes” e afirma que as investigações, mesmo se estendendo por quase três anos, “não conseguiram juntar aos autos uma única prova das acusações”. Leia a íntegra da resposta aqui.
Casamento entre ouro e pó
A PF afirma que o grupo comandado por Grota movimentou ilegalmente cerca de R$ 1 bilhão no Pará entre 2017 e 2020. Para lavar o dinheiro do tráfico de drogas, ele teria utilizado laranjas e empresas de fachada para comprar e vender fazendas, gado, garimpos e maquinário usado para extração de ouro.
Condenado em primeira instância no Maranhão e preso em junho de 2018 por chefiar um grupo miliciano de policiais militares (acusado de tráfico de drogas e de armas, além de assaltos a bancos), Grota saiu em liberdade provisória ainda em outubro daquele ano. Em outro processo no mesmo estado, Grota aparece como réu por homicídio.
Ainda em 2018, Grota se instalou em Itaituba como pecuarista e investidor de ouro. Em pouco tempo na “Cidade Pepita”, ficou rico. Sem patrimônio declarado em 2019, ele informou R$ 14 milhões no ano seguinte à Receita Federal, segundo os inquéritos acessados pela Repórter Brasil.
Seus bens incluem uma mineradora, além de garimpos, fazendas e aeronaves. Um mesmo avião Cessna do grupo apareceu em três operações policiais diferentes sobre lavagem de dinheiro e transporte de ouro, cocaína e armas.
A defesa de Grota nega as acusações de enriquecimento ilícito e sustenta que “tais alegações não condiz [sic] com a realidade, haja vista que todos os bens foram devidamente declarados e seus impostos totalmente recolhidos”.
Grota e o piloto de avião apontado como seu sócio gerenciavam ao menos 12 pistas de pouso e 23 aeronaves para a prática dos crimes, segundo os inquéritos.
As rotas aéreas na Amazônia são um dos principais elos entre o tráfico de drogas e o garimpo ilegal. Com cerca de 1.300 pistas clandestinas, a região é terreno fértil para diferentes organizações criminosas.
“É um aproveitamento das rotas”, resume o pesquisador Roberto Magno, do Laboratório de Geografia da Violência e do Crime da Universidade do Estado do Pará. Ele afirma que a mesma lógica se verifica também para os barcos que operam ilegalmente nos rios amazônicos.
Demanda por ouro e coca em alta
Para quem atua no contrabando desses produtos, os últimos anos foram um período de vacas gordas. As exportações do minério de ouro extraído na Amazônia quase dobraram entre 2017 e 2022, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, saltando de 11,6 para 22 toneladas – um total avaliado em R$ 6,6 bilhões. Boa parte desse ouro teria sido extraído ilegalmente, segundo pesquisadores.
Já as apreensões de cocaína, que representam apenas uma parte do tráfico, triplicaram no período, alcançando 32 toneladas no ano passado – essa quantidade pode render até R$ 8,5 bilhões no mercado internacional.
Os grupos criminosos se beneficiam ainda da variação de preços desses produtos, podendo direcionar investimentos para um ou outro, dependendo do retorno financeiro. “O preço da cocaína caiu em 2020 por causa de uma hiperprodução. E o ouro, por outro lado, subiu de preço”, diz Melina Risso, diretora de pesquisa do Instituto Igarapé, explicando outro motivo que atraiu o tráfico para dentro dos garimpos.
Grota entrou no radar da Polícia Federal em 2019, após a apreensão de meia tonelada de cocaína em um barco em Santarém (PA). Segundo a PF, suspeitos investigados nesse processo tinham proximidade com Silvio Berri.
Dono de uma longa trajetória no tráfico, Berri é considerado pela PF o sócio de Grota. Em 2004, ele foi extraditado do Paraguai para cumprir 20 anos de pena no Brasil, depois de trabalhar como piloto de Fernandinho Beira-Mar.
Na operação de 2020 iniciada no Paraná, Berri foi preso novamente. Na época, além de atuar ao lado de Grota, ele também foi denunciado por participação em um esquema de venda de cocaína para África e Europa comandado por Sergio Roberto de Carvalho, o “Major Carvalho”.
Conhecido como “Pablo Escobar brasileiro”, Carvalho responde a um processo de extradição na Hungria, onde foi preso no ano passado pela Interpol.
“Não podemos ver o crime organizado com uma cadeia única de comando. Por isso, vamos encontrar várias pessoas atuando em diferentes esquemas”, explica Magno.
As rotas aéreas gerenciadas por Grota e Berri renderiam uma cena digna de cinema, segundo o inquérito da PF. Em setembro de 2020, após ser perseguido por um caça da Força Aérea Brasileira (FAB), um piloto do grupo conseguiu pousar o avião em uma pista clandestina, tocar fogo no equipamento e fugir. Posteriormente, as cinzas foram periciadas pela PF e indicaram que a carga era cocaína.
O mesmo piloto chegou a ser preso em 2019 por fazer voos com drogas para o Suriname, em outro esquema de tráfico internacional, desta vez chefiado por Luiz Carlos da Rocha, o “Cabeça Branca” – um narcotraficante que fez até plásticas no rosto para fugir da polícia.
Havia pelo menos oito pilotos que trabalhavam para Berri e Grota e estavam envolvidos em práticas criminosas na Amazônia, segundo a PF. Em junho de 2022, aeronaves vinculadas a alguns deles foram flagradas transportando ouro de garimpos ilegais no município de Japurá, no Amazonas. Um dos pilotos já era investigado por usar a mesma rota para o tráfico de cocaína.
A defesa de Grota refuta a acusação de que seu cliente seria sócio de “traficantes conhecidos”. Segundo a nota, nos autos do inquérito da PF, não há “interceptação telefônica ou qualquer prova que pelo menos ele conheça tais pessoas”.
Além de ouro e cocaína, gado
Após mapear aliados de Grota em diferentes inquéritos, a PF deflagrou a operação Narcos Gold em 2021. O alvo específico era Grota e o grupo supostamente encabeçado por ele. A investigação prendeu alguns de seus parceiros, como a advogada Helenice Carvalho e seu irmão, Diego Oliveira, apontado como laranja dos garimpos e de fazendas adquiridas por Grota.
A PF suspeita que a advogada tenha auxiliado Grota a fugir. Ela foi acusada pelos agentes por participar ativamente na lavagem de dinheiro ao ajudar a “dissimular” os ganhos do seu cliente com o tráfico.
Casada com o superintendente da Polícia Civil em Itaituba, Helenice soube da operação antes que os agentes chegassem à sua casa às 6 horas da manhã de 4 de novembro de 2021, de acordo com o inquérito da PF. Ainda na madrugada, ela disparou mensagens para o marido e para dois chefes de batalhão da PM na região.
Helenice também fez contato com o segurança privado de Grota. Naquele dia, o empresário estava em uma de suas fazendas, a Vale do Ouro, em Itaituba. Quando a PF chegou ao local, Grota já não estava lá.
Com base nas investigações da Polícia Federal, o Ministério Público do Pará (MP-PA) denunciou Grota à Justiça em março de 2022 pelos crimes de tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, associação ao crime e corrupção de servidor público.
Enquanto esteve foragido, dois juízes se declararam incompetentes para julgar o caso, em meio a uma disputa sobre qual seria a vara adequada para o processo. O Tribunal de Justiça do Pará (TJ-PA) interveio, retirando o caso do foro de Santarém e enviando-o à vara de combate ao crime organizado, em Belém.
“Há indícios de que uma sofisticada organização criminosa se estabeleceu no oeste do Estado do Pará, com o propósito de transportar grandes quantidades de entorpecentes, em aeronaves próprias, pistas de pouso em fazendas e garimpos que também serviam para lavagem de capitais, (?) liderados por Grota”, diz a decisão.
A mudança, porém, acabou beneficiando Grota, já que os mandados de prisão e apreensão foram anulados para análise do novo magistrado.
O escritório de advocacia que representa Grota e seu irmão disse que “a defesa técnica está convicta de que restará provado ao final a indiscutível inocência dos acusados”.
Procurado, Berri não respondeu às perguntas da reportagem.
Já Helenice Carvalho afirmou que não se manifestaria sobre as acusações da PF (leia os posicionamentos na íntegra).
De volta a Itaituba, Grota continua nos holofotes como pecuarista. Pelo menos 2.000 cabeças de gado passaram pela fazenda Vale do Ouro entre 2020 e 2022, segundo guias de transporte animal acessadas pela Repórter Brasil. A compra de gado para lavar dinheiro do tráfico também faz parte do esquema do empresário, segundo a PF.
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