Organizações indígenas contestam na Justiça a existência de 60 processos ativos na ANM (Agência Nacional de Mineração) com intenção de exploração de ouro em terras do médio e alto rio Negro.
Os empreendimentos, se levados adiante, vão impactar a vida de 45 mil indígenas, conforme documento da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) protocolado em julho na Justiça Federal no Amazonas. A petição leva em conta um levantamento feito pelo ISA (Instituto Socioambiental).
A região no noroeste do estado, que engloba a fronteira com Colômbia e Venezuela, é uma das mais preservadas da Amazônia.
Conhecido como Cabeça do Cachorro, pelo formato no mapa, o lugar abriga indígenas de 23 etnias. Eles vivem em 750 comunidades de nove terras indígenas, nas imediações de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos.
Às margens esquerda e direita do rio Negro estão 61 comunidades, onde vivem 3.800 indígenas que sofreriam os impactos dos garimpos de ouro. Às margens dos afluentes do rio estão outras comunidades, o que amplia a população atingida para 45 mil, segundo os dados compilados pelas organizações.
Os 60 requerimentos ativos na ANM buscam autorizações para pesquisa e exploração de ouro em áreas que somam 149 mil hectares, quase o tamanho da cidade de São Paulo.
A manutenção desses requerimentos contraria decisões da Justiça Federal no Amazonas, que já determinou a invalidação desses processos diante da ilegalidade da exploração de ouro e outros minérios em áreas de terras indígenas.
A Constituição Federal estabelece que uma lei deve prever as “condições específicas” para pesquisa e lavra de minerais nesses territórios. Além disso, o Congresso deve aprovar eventuais projetos de mineração. Como nunca houve essa regulamentação, a mineração em terras indígenas é vedada na prática.
O governo Jair Bolsonaro (PL) atua para a liberação dessas atividades. Em 2020, um projeto de lei foi enviado ao Congresso pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e pelo então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque. O texto regulamenta os pontos previstos na Constituição e libera a exploração. Apesar da aprovação de urgência no Congresso, a proposta não avançou mais.
Dos 60 pedidos da ANM, 25 foram protocolados no governo Bolsonaro, na esteira da expectativa de regulamentação. Se levados em conta outros processos de exploração mineral, referentes a estanho, cassiterita, nióbio, cascalho e areia, o número de requerimentos ativos chega a 77.
Procurada, a agência não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Em dezembro de 2021, uma série de reportagens do jornal Folha de S.Paulo revelou que o ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, autorizou o avanço de sete projetos de exploração de ouro na região da Cabeça do Cachorro.
Os projetos englobam áreas que somam 12,7 mil hectares e estão em trechos e ilhas do rio Negro que cortam duas terras indígenas, onde vivem povos de 11 etnias.
O ministro do GSI é secretário-executivo do Conselho de Defesa Nacional, a quem cabe autorizar projetos de mineração na faixa de fronteira -até 150 quilômetros adentro.
Depois da revelação, partidos e congressistas apresentaram pedidos a STF (Supremo Tribunal Federal), PGR (Procuradoria-Geral da República), MPF (Ministério Público Federal) e Congresso para derrubar os atos de Heleno.
O MPF passou a investigar as autorizações. Duas ações passaram a tramitar no STF.
Heleno, então, recuou e decidiu cancelar as medidas, diante da constatação por órgãos do governo de que os chamados assentimentos prévios liberaram projetos em áreas de terras indígenas.
A contestação feita pela Foirn se dá no curso de uma ação popular em tramitação na Justiça Federal no Amazonas. A ação foi movida por parlamentares após a publicação das reportagens e já teve manifestação favorável do Ministério Público, que pediu a suspensão dos requerimentos que incidem em duas terras indígenas.
O levantamento do MPF apontou 33 requerimentos para lavra, pesquisa ou licenciamento, a grande maioria para exploração de ouro. Os dados usados pela Foirn, que pede para fazer parte da ação, mostram que o problema é ainda mais abrangente.
As organizações levaram em conta os requerimentos ativos nas áreas das terras indígenas Jurubaxi-Téa, Rio Téa, Yanomami, Médio Rio Negro I, Médio Rio Negro II e Cué-Cué Marabitanas -um dos assentimentos prévios assinados por Heleno incidia sobre esta última.
A região é um “mosaico de áreas ambientalmente protegidas”, segundo a petição da Foirn. Além das terras indígenas, fazem parte da região o Parque Nacional Pico da Neblina -também afetada pela autorização do ministro do GSI- e a Floresta Nacional do Amazonas. “É a maior região úmida do mundo”, cita o documento protocolado na Justiça.
“O rio, além de ser fonte de recursos naturais para estes povos, compreende a dimensão da territorialidade ancestral dos indígenas que milenarmente ocupam a bacia do rio Negro”, afirma a Foirn na petição. “É, ainda, um local sagrado, que integra a cosmovisão indígena, sendo palco de diversos mitos de origens dos diferentes povos que habitam a região.”
Em 2021 e 2022, houve uma intensificação de garimpo ilegal no médio rio Negro, conforme a federação. Denúncias foram apresentadas ao MPF e ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
Os próprios processos que tiveram assentimentos prévios anulados pelo ministro do GSI continuam ativos na ANM. Um único empresário tenta explorar ouro em 36 mil hectares na região, inclusive em terrenos da União. O pedido mais recente foi formulado no último dia 16.
“O garimpo ilegal traz, além da degradação ambiental, impactos sociais expressivos à região. Casos de estupros, brigas e assassinatos voltaram a fazer parte do cotidiano dos moradores do médio rio Negro, que se encontram ameaçados também pelo aumento da atuação de narcotraficantes”, afirma o documento. Para a organização indígena, autorizações de garimpos vão piorar a situação.
Presidente da federação, Marivelton Barroso afirma que qualquer exploração minerária no rio Negro impacta as terras indígenas e os povos que moram nesses territórios. Segundo ele, cada vez mais surgem balsas e dragas de médio e grande porte.
“Os mais afetados seremos nós. Não são o governo, as empresas, a sociedade urbana, mas a gente que está dentro do território. Não temos proteção do Estado, e o assédio acaba chegando às comunidades”, diz.
O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.
*Com Folhapress