Protesto indígena, em abril, pela demarcação de terras indígenas e contra avanço de pautas antiambientais no Congresso (Foto: Mídia Ninja)

Enquanto o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles sugeria aproveitar a pandemia para ir “passando a boiada”, pelo menos 351 deputados federais, ou dois terços da Câmara dos Deputados, estavam votando medidas e elaborando projetos de lei contrários ao meio ambiente, aos povos indígenas e aos trabalhadores rurais.

A conclusão é do Ruralômetro, ferramenta desenvolvida pela Repórter Brasil que avalia a atuação dos deputados diante da agenda socioambiental.

Esses parlamentares apresentaram projetos de lei e votaram mudanças legislativas que prejudicam a fiscalização ambiental, favorecem atividades econômicas predatórias, precarizam a legislação trabalhista, dificultam o acesso a benefícios sociais e travam a reforma agrária, dentre outros retrocessos apontados por organizações socioambientais.

Para avaliar os deputados, foram analisadas 28 votações nominais e 485 projetos de lei apresentados na atual legislatura, iniciada em fevereiro de 2019. As propostas e os votos foram classificados como “favoráveis” ou “desfavoráveis” por 22 organizações especializadas em temas sociais, ambientais e trabalhistas.

Cada deputado recebeu uma pontuação entre 36° C a 42° C — equivalente à temperatura corporal. Quanto pior o desempenho, mais alta a temperatura. Classificações acima de 37,4° C indicam “febre ruralista” — ou atuação desfavorável.

Os resultados da análise indicam o avanço da “nova direita” no Legislativo e mostram também o poder, em Brasília, da Frente Parlamentar da Agropecuária, conhecida como bancada ruralista.

Com a onda bolsonarista de 2018, foi eleito um Congresso mais à direita que os anteriores. E ainda temos um governo anti-indígena e antiambiental, que construiu uma base de apoio no Legislativo com o centrão [grupo de partidos aliado ao governo] e dá reforço institucional à agenda regressiva”, explica Cláudio Couto, cientista político e professor de gestão pública da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Analistas ouvidos pela reportagem dizem que a inclinação ruralista da Câmara já era uma realidade, mas o governo Bolsonaro desequilibrou o tabuleiro político com o enfraquecimento do Ministério do Meio Ambiente.

Mesmo diante dessa maioria ruralista do Legislativo, sempre foi possível aprovar leis de proteção ao meio ambiente e aos povos tradicionais, segundo Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista em políticas públicas do Observatório do Clima. Para isso, no entanto, pesava o apoio de parte do Executivo.
“Mas isso se perdeu, porque o Ministério do Meio Ambiente é hoje o primeiro a apoiar no Congresso a derrubada da proteção ambiental”, diz ela, que trabalhou por 29 anos na Câmara como consultora legislativa de meio ambiente. Foi uma tempestade perfeita em desfavor do meio ambiente, a pior legislatura desde a redemocratização”, analisa Raul Valle, diretor de Justiça Socioambiental da WWF Brasil.

Entre os retrocessos aprovados pela Câmara desde 2019, Kenzo Jucá, assessor legislativo do ISA, aponta três projetos do chamado “pacote da destruição”:

1. o PL 6.299/2002, ou “PL do Veneno” (que libera o uso de agrotóxicos, incluindo os comprovadamente cancerígenos, sem necessidade de aprovação da Anvisa);

2. o PL 2633/2020, conhecido como “PL da Grilagem” (que afrouxa a fiscalização fundiária e facilita a grilagem de terras públicas);

3. e o PL 3729/2004, ou Lei Geral do Licenciamento Ambiental (que elimina o licenciamento em alguns casos, cria o autolicenciamento em outros e enfraquece o papel das agências ambientais).

As três medidas, que fazem parte da base de dados do Ruralômetro, passaram na Câmara e estão em análise no Senado.

Única parlamentar indígena no Congresso em mais de 30 anos, a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR, 36,6° C) avalia que, com o reforço da base ruralista, os ambientalistas têm sido obrigados a atuar na defensiva, sem muito espaço para avançar com propostas. “A gente tem feito o possível para não desmontar totalmente os poucos direitos dos povos indígenas”, afirma a parlamentar.

Direita e esquerda

Embora seja uma epidemia na direita, a “febre ruralista” atinge também deputados de legendas de esquerda, como Flávio Nogueira (PT-PI, 37,9° C). Em 2021, quando era filiado ao PDT, o parlamentar votou a favor do “PL da Grilagem”. Procurado, o deputado não comentou.

A atuação do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL, 38,2° C), é crucial para entender o avanço das pautas antiambientais, segundo os especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.

Os projetos do “pacote da destruição”, por exemplo, foram votados em sua gestão. Além de ditar o ritmo das votações, Lira consolidou o poder do Congresso com o chamado “orçamento secreto”, que permitiu a parlamentares da base aliada ter preferência no envio de recursos federais para suas bases eleitorais. O presidente da Câmara não respondeu às perguntas da reportagem.

“O governo em boa medida abdicou de sua capacidade de liderar o processo legislativo em favor das lideranças do Congresso. Lira tem sido o grande artífice do encaminhamento dessa agenda regressiva”, afirma Couto, da FGV.

O ‘orçamento secreto’ vai favorecer a disputa eleitoral desses parlamentares [mais próximos ao governo atual]. Não dá para mensurar quanto, mas eles têm uma situação vantajosa”, avalia
Cláudio Couto, cientista político

O Ruralômetro 2022 avaliou 499 dos 513 deputados, excluindo aqueles que participaram em menos de dez das votações selecionadas, os suplentes que assumiram no meio do mandato e três políticos que morreram no decorrer da legislatura.

Assim como em 2018, quando foi lançada a primeira edição, a plataforma também cruza dados do Ibama, do Ministério do Trabalho e do TSE para mostrar quais deputados têm multas ambientais ou trabalhistas, e quais receberam doações eleitorais de infratores ambientais e trabalhistas.

Com informações da Repórter Brasil