Túlio Asbahr viveu cinco anos em um convento para ser freira - Foto: Arquivo pessoal

Túlio Asbahr, 37, viveu cinco anos em um convento antes de entender sua verdadeira identidade. Nascido em Limeira (SP), ele passou a infância e adolescência frequentando a igreja e, quando alcançou a maioridade, decidiu que seria freira.

Com o decorrer do tempo, porém, percebeu que não tinha vocação religiosa e, em meio a uma trajetória de autoconhecimento, se reconheceu como um homem trans. Ao UOL, Túlio conta a sua história.

“Tinha de negar de todas as formas”

“Meus pais nunca foram muito religiosos. As pessoas acreditam que eles me influenciaram de alguma forma, mas não. Fui uma criança normal, ensinada a ir à igreja e fazer catequese. Fiquei em grupos de jovens e acabei tendo contato com retiros vocacionais [em que jovens refletem sobre suas vocações na Igreja].

Comecei a achar que tinha vocação para a vida religiosa. Além disso, sempre tive dificuldade grande de me relacionar com meninos e isso foi reforçando essa ideia.

Terminei a catequese aos 11 anos e fui uma adolescente normal. Conheci mais a ordem franciscana, que tinha contato com pessoas em situação de rua, por exemplo, gostei e me identifiquei.

Aos 16, quando estava no ensino médio, decidi que queria entrar para a Igreja.

Meus pais não concordaram. Eles queriam que eu terminasse os estudos. Então, quando completei a maioridade, como não precisava de autorização, eu fui. Meus pais não gostavam, achavam que estava bitolado, que não era para mim.

Fui para o Instituto de Vida Consagrada, onde fiquei por cinco anos. Passamos por etapas de formação e, no primeiro ano, percebi que tinha dificuldades nas relações de afetividade porque tinha contato com muitas mulheres o dia inteiro.

Vivíamos em comunidade só com mulheres. Às vezes, uma amizade, uma intimidade grande com alguém ia aflorando algumas coisas. Estávamos no início da juventude, com hormônios à flor da pele.

Era muito difícil, tudo era novo. Queria estar perto, mas ao mesmo tempo não podia. Tinha de negar de todas as formas. Tinha de lidar como tentação, pecado. De missão em missão, convivia com isso. Foram cinco anos nesse dilema.

Conhecia alguém de quem eu virava amiga e me apaixonava. Era um tabu e não falávamos abertamente sobre isso.

Tínhamos uma superiora, com quem deveríamos ser abertos, contar tudo, e cheguei a falar sobre essa dificuldade. Trataram como se eu fosse problemático. Já tinha até trocado de missão por isso. Não era a primeira pessoa ali dentro a viver isso, mas fui pintado como o diabo.

Arrastei a situação até o noviciado, última etapa da consagração. Então, me relacionei com uma noviça e foi a gota d’água.

Até então, apesar da tensão sexual, não tinha beijado ninguém no convento. E, com ela, aconteceu por vários dias. Vivemos um romance — totalmente escondido. Tínhamos de nos encontrar de madrugada. Às vezes, íamos no mesmo horário para a missa e dávamos uma escapada. Ninguém sabia.

Em dado momento, com a madre superiora, tivemos de confessar. Ela, a mulher com quem me relacionei, já tinha decidido falar. Eu, não. Ela tinha decidido que ia embora.

No dia da despedida, conversei com ela. Lembro muito bem da cena. Estávamos no banheiro e tinha irmãs vigiando a gente. Foi um caos, um barraco. Depois daquilo, percebi que o convento não era para mim. Disse que ia embora.

Então saí de Santos, no litoral paulista, e voltei para casa, em Limeira.”

“Gostava de meninas”

“Olhando para trás, percebo que já tinha essa questão de gostar de mulheres desde a adolescência.

Na escola, houve outros momentos em que eu me apaixonei, mas só hoje consigo olhar e entender isso bem. Na época, não tinha essas referências. Hoje é tudo muito evidente para mim.

Quando entrei para o convento, entendo que já tinha dificuldade de me relacionar com meninos porque, na verdade, eu gostava de meninas.

Voltei a Limeira e toquei minha vida, como mulher. Demorei uns quatro anos para me aceitar como mulher lésbica. Ainda me esforcei muito para querer namorar meninos e também frequentava a igreja. Demorei um pouco a me desvincular. Acho que isso começou por volta dos 27 anos.

Precisava me afastar para me aceitar. Só pessoas muito próximas sabiam do que tinha acontecido no convento. Na época, não contava para ninguém o motivo de eu ter saído.

Nessa época, as mesmas afinidades que eu tinha no convento, comecei a ter fora também. Tinha uma amiga, que era minha melhor amiga, e era apaixonado por ela. Vivi um bom tempo assim, sem poder viver esse romance porque ela também era muito ligada à igreja.

A gente às vezes ficava e depois vinha aquela culpa de ‘tenho de confessar’.”

“Assumi minha identidade como mulher lésbica”

“Depois, me aceitei e decidi entrar nos aplicativos de relacionamento, para conhecer mulheres. Foi assim que conheci minha ex-namorada. Os pais dela não aceitavam nosso relacionamento e os meus concordavam desde que eu não falasse sobre isso para outras pessoas.

Acho que ganhei confiança para assumir minha identidade como mulher lésbica por causa do conhecimento. Comecei a conhecer mais pessoas, sair um pouco daquela bolha e expandir horizontes. Fui estudar, fazer faculdade e abri a mente. Esse contato com um mundo diferente começou a me encorajar para realmente me aceitar.

Namorei ela por quatro anos. Ainda tinha dificuldade de mostrar para o mundo como eu realmente era. Na época, era uma menina padrão, tinha dificuldade de comprar roupa, não conseguia, tudo o que eu tinha era presente dos outros. Não me identificava.”

“Virada de chave”

“Quando nosso relacionamento terminou e conheci minha atual esposa, houve uma virada de chave.

Ela teve uma criação diferente da minha. A avó dela é casada há 26 anos com uma mulher e elas a criaram. Ela não passou pelo dilema de aceitação que eu tive na adolescência.

Ela [a atual esposa] cresceu frequentando a Parada LGBTQIA+ e sempre se reconheceu como mulher bissexual, sem muitos dilemas.

Quando começamos a sair, mergulhei mais nesses temas. Um dia, decidi cortar o cabelo e ela falou: ‘corta, vai ficar bonito’. Comecei a ter outro visual, mais masculino.

Eu dizia que, se fosse mais novo, gostaria de fazer a transição. E ela me dizia que não tinha idade para isso. Comecei a conhecer mais pessoas, a me questionar e realmente me entender. Então, comecei a fazer a transição aos 33 anos, em 2021.”

Quando comecei a tomar hormônio, vi muita mudança. Não adiantava lutar contra, eu me identificava com isso. Passei a entender muita coisa. Sempre tive disforia nos peitos, por exemplo. Eles eram lindos, mas não queria mostrá-los a ninguém.

Fiz a mastectomia e minha mulher me apoiou bastante. A transição é um processo: tomo hormônio de três em três meses e sempre estou me descobrindo mais.

Quando comecei a tomá-los, aconteceu uma coisa que me ‘bugou’. Passei a sentir atração por homens e uma coisa fez sentido: não é que não gostava deles, eu não me identificava com quem eu era e, por isso, não conseguia me relacionar.

Meu pensamento mudou muito quando comecei a transição. Decidi que viveria tudo o que tinha para viver, que me permitiria mais. Hoje, me considero um homem bissexual e saio com homens e mulheres. Sou casado, mas abrimos a relação.

Também tenho uma filha de 7 anos, que conheci quando ela tinha 2. Ela é maravilhosa, uma criança espetacular e a primeira a corrigir meu nome [de gênero masculino]: ela nunca errou e sempre foi algo natural.

Até quando os meus pais erram, ela corrige. Ainda é difícil para os meus pais, foi um processo ganhar o respeito deles.”

“Pior de tudo é não se aceitar”

“Não tive mais contato com pessoas do convento. Não sei onde está a menina com a qual me relacionei. Vejo que tudo o que passei foi muito importante, mas são caminhos doloridos.

O pior de tudo é não se aceitar. E por que a gente não se aceita? Enquanto não normalizarmos as pessoas e suas identidades a gente não vai ter representatividade, o que é muito importante.

Não tinha ninguém como eu na novela, na TV. Meus pais nunca tiveram amigos gays e a familiar lésbica da família era escondida.

Tudo o que passei foi importante porque foi como construí minha história e me descobri. Mas poderia ter sido menos sofrido, se eu tivesse mais representatividade e mais contato com pessoas como eu durante a vida.”

*Com informações de Uol