Uns anos atrás, o músico paraense Tonny Brasil, que se diz criador do tecnobrega, recebeu uma ligação dizendo que Júnior Rêgo, colega de profissão, estava no estúdio da Metropolitana FM, no centro de Belém, falando que era o pai do estilo musical. “Liguei para a rádio, disse para ele ficar ali para conversarmos. Quando cheguei, já tinha ido embora.”
Aquela entrevista, somada a anos de alfinetadas entre os músicos, marcou um momento de exposição mais direta do debate no Pará, novamente em voga depois de Gaby Amarantos ganhar um prêmio no último Grammy Latino.
No festival Psica, que reuniu 60 mil pessoas em dezembro, em Belém, ela foi celebrada como rainha, e o prêmio, como o maior reconhecimento da história de um gênero periférico que, apesar de existir há mais de duas décadas, ainda carece desse tipo de aprovação.
Além de Tonny e Rêgo, a disputa em torno da paternidade do tecnobrega tem mais um elemento. Jurandy, um dos nomes de maior sucesso nos primeiros anos do gênero, também é lembrado como criador do gênero.
Mas ele dispensa a alcunha. Prefere o título de rei do tecnobrega. “O pai é o Júnior Rêgo”, diz Jurandy. “O Tonny batizou. Não tinha nome, ele comercializou como tecnobrega. Mas não criou a história. O que ele gravava era o [brega] romântico. O Júnior veio dançante.”
Essa disputa esquentou em maio do ano passado, quando a Assembleia Legislativa do Pará concedeu uma comenda reconhecendo Tonny Brasil como criador do gênero. Ele também é tratado dessa maneira em documentários sobre o tecnobrega, como “Brega S/A” e os extras do DVD “Tecno Melody Brasil”, além de reportagens da imprensa local.
Tonny usa a mídia e o estado como chancela. “Me vejo como o criador, e isso agora está certificado pelo estado, não se pode mudar. Mas não gosto desse título de pai. Dei a ideia, mostrei a possibilidade, não escondi a fórmula. Depois, cada um foi para um canto. Quem deu o estopim, é inegável, fui eu.”
Júnior Rêgo se sente apagado da história. “Sou o verdadeiro autor do tecnobrega”, diz. “Você não vê ele [Tonny] dizer que é o pai, manda os outros dizerem. Paga matéria no jornal. Tem vergonha de me encontrar. Não fala comigo. Tanto ele quanto Gaby Amarantos escondem o Júnior Rêgo.” Procurada pela reportagem, a cantora não quis comentar.
Para além dos conflitos pessoais e de narrativas, há questões estéticas que ajudam a entender a gênese do estilo. “O tecnobrega dá seus primeiros passos no final dos anos 1990, quando o axé dominava o Brasil e o mercado de brega pop no Pará passava por uma crise”, diz Zek Picoteiro, DJ e pesquisador do brega paraense. “Os artistas tiveram que achar uma solução mais acessível para produzir seus discos.”
No Pará, o brega ganhou uma identidade própria a partir dos anos 1970, como uma espécie de resposta à jovem guarda de Roberto Carlos, com nomes como Teddy Max, Luiz Guilherme e Mauro Cotta. Essas influências de rock se fundiram a estilos locais, como a lambada, e desembocaram no brega pop de Roberto Villar, Alberto Moreno e Wanderley Andrade, e no brega calipso de Joelma e Chimbinha, na década de 1990.
Foi nesse cenário que Tonny Brasil, depois de ver músicos se apresentando só com teclados numa viagem a Caiena, na Guiana Francesa, decidiu apostar nas gravações sem banda. Ele sequenciou todos os instrumentos, diz Zek Picoteiro, “as levadas de bateria e suingues de guitarra do brega pop, trazendo uma sonoridade eletrônica para o gênero”.
Essas experiências depois geraram a música “Lana”, tida como a primeira gravada totalmente de maneira eletrônica, sem instrumentos, e que para Tonny é a canção fundadora do tecnobrega. Segundo o músico, a faixa já era sucesso “na pirataria de fita cassete” e nas aparelhagens em 1991, e depois em CD independente em 1996, e pela gravadora Gema no ano seguinte.
O sucesso de “Lana” fez com que mais artistas gravassem só com teclados e computadores, uma redução drástica nos custos de produção. Aquela sonoridade sintética a princípio não foi bem vista, tida como empobrecimento estético da música paraense. “Foi muita ousadia”, diz Tonny. “Tomei muita porrada. Fiquei até com medo de lançar. Não queria mostrar [‘Lana’] para ninguém.”
Mas, apesar das experiências inovadoras, a sonoridade de Tonny ainda era romântica e alinhada ao brega pop feito com instrumentos. A mudança, ele diz, veio em 1997, com a canção “A Prima da Cunhada”, época em que o termo tecnobrega já era conhecido —tese reforçada por Jurandy e Zek Picoteiro.
Naquele momento, dois acontecimentos abriram a cabeça de Jurandy. Um deles foi ver um show da banda cearense Forró Moral, em 1998. “Fiquei encantado com aquele suingue, um forró com dois percussionistas. Falei ‘vou levar isso ao Pará’.”
Ele pegou elementos dessa percussão do forró e inseriu como novidade a combinação de caixa e chimbal eletrônicos fazendo a célula rítmica que acompanha o brega paraense desde a época de Teddy Max. “Modernizei [o estilo] com essa percussão.”
A outra virada foi a canção “Mundiquinha”, que Tonny Brasil compôs depois de ficar mexido com a saída do cantor Rodolfo Abrantes da banda Raimundos, em 2001. “Eles tinham ‘Puteiro em João Pessoa’, aquela metralhada”, ele diz. “O Rodolfo disse que foi influenciado pelo coco nordestino. Pensei em criar a saga de uma cabocla com isso.”
“Mundiquinha”, diz Jurandy, foi “a primeira vez que senti que a coisa estava para acontecer”, “a música que abriu todas as minhas ideias”. Apesar de “Chico Preto” ser o maior sucesso do cantor, “Brega da Marmita”, com o ritmo de caixa e chimbal, levada de coco no canto e arranjos de sintetizadores, é a faixa que melhor representa seu estilo.
“Os primeiros hits do tecnobrega mesmo são dele”, diz Zek Picoteiro. “Em 2002, só se ouvia Jurandy nas festas de comemoração do pentacampeonato do Brasil.”
Mas, enquanto isso acontecia, diz Jurandy, “Júnior Rêgo já estava gravando, já fazia parte do tecnobrega”. Em Capanema, no interior do Pará, ele abraçou a música eletrônica de pista, como techno e house, que vinha do exterior.
Mauricio Costa, professor de história na Universidade Federal do Pará e autor do livro “Festa na Cidade”, sobre o circuito do brega paraense, diz que o tecnobrega surgiu nesse momento de “ascensão da música dos clubes das grandes cidades europeias, com as raves”.
“São processos que acontecem simultaneamente”, diz. “Tem a ver com a disponibilidade dos equipamentos de mixagem e gravação, que se tornaram acessíveis na América Latina para produtores de áreas periféricas, como é o caso de Belém.”
Foi nesse filão que Júnior Rêgo se encontrou. Nas festas de aparelhagem no fim dos anos 1980, ele diz, “tocava muito dance, techno e house”. “Sempre gostei desses instrumentais, achava moderno.”
Rêgo estudou música clássica, e não gostava de brega antes de ser seduzido por músicas como “Profissional Papudinho”, hit de Roberto Villar. Em seu primeiro disco, “Ópera do Brega”, ainda com sonoridade brega pop de banda, em 1999, inseriu na faixa “Separação” uma introdução eletrônica.
Essa música e a faixa-título, ele diz, começaram a fazer sucesso um ano depois. “Pensava, já que a juventude gosta de dance nas aparelhagens, vou fazer um brega com esse estilo. Vi que a modernidade se encaixava muito bem dentro do brega.”
Rêgo se notabilizou com uma prática comum no tecnobrega até hoje, o uso de trechos de sucessos estrangeiros da música eletrônica. Um exemplo é “Brega do Tupinambá”, de 2001, que cita a aparelhagem Tupinambá na letra, e traz um teclado que reproduz o hit “Better Off Alone”, de Alice DeeJay.
Segundo o artista, o primeiro tecnobrega da história é “Tecnotupinambá”, lançada no início dos anos 2000. A música, com sample de um sucesso eletrônico internacional, cita na letra o termo que batiza o gênero.
A partir dali ele lançou diversas músicas com essa estética —levadas aceleradas de um brega pop festeiro, no estilo calipso, criado no computador e com os arranjos eletrônicos—, muitas feitas sob encomenda para equipes de aparelhagem. “Todas com introduções internacionais para dar aquele charme”, ele diz.
O tecnobrega, diz Rêgo, “é a fusão do brega paraense com a música americana”. “É o brega moderno, o calipso moderno. Mais acelerado, com instrumentais e sons futuristas.”
A disputa entre Rêgo e Tonny começou quando o primeiro viu uma reportagem no jornal O Liberal em que o segundo era tratado como criador do tecnobrega. Segundo Rêgo, o som de Tonny nunca foi tecnobrega. Segundo Tonny, quem cunhou o termo que dá nome ao gênero, usado para divulgação de sua música, foi o publicitário Rosenildo Franco, ainda nos anos 1990.
Hoje, Tonny prega união, em discurso apoiado por Jurandy. Diz que a música paraense “está nessa de separação há muito tempo, e hoje a busca é para unir forças”. Já para Rêgo a luta é pelo reconhecimento de sua contribuição.
A partir de 2002, o tecnobrega se diversificou, ganhou subgêneros e vertentes. Nomes como a banda Fruto Sensual, Xeiro Verde, Beto Metralha, Tecno Show, comandada por Gaby Amarantos, e Maderito, entre muitos outros, fizeram parte desse momento da história do gênero, que ganhou fama nacional.
“Não há um pai”, diz Mauricio Costa, o professor. “Na verdade, há vários pais. E mães também, se considerarmos as intérpretes como criadoras. É um processo de ação coletiva, de um amplo movimento.”
“O tecnobrega enquanto gênero musical se consolidou com um sotaque de batidas, sintetizadores e uma dinâmica sonora própria. Não era mais um somente um brega pop eletrônico”, diz Zek Picoteiro. “E quem fez essa identidade sonora se popularizar foram artistas do interior —como Júnior Rêgo, de Capanema, e Jurandy, de Castanhal.”
Segundo o DJ, mais importante do que fazer um “teste de DNA” no tecnobrega, é entender o que essa história representa para a cultura amazônica. “Num contexto de escassez da virada do milênio, no norte do Brasil, nas beiras de rios e estradas inacabadas, nas periferias das metrópoles lotadas de condições sociais precarizadas, surge um gênero musical altamente tecnológico, original, autêntico, que traduz o mundo globalizado para o nosso sotaque.”
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