Congresso Nacional - Foto: Leonardo Sá / Agência Senado

A proposta de Reforma Administrativa está avançando na Câmara dos Deputados. O presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos) , anunciou, nesta segunda-feira (25), a realização de uma comissão geral no plenário para discutir sobre a reestruturação do serviço público no Brasil. O debate será realizado em 3 de setembro e tem como foco ouvir os parlamentares sobre as regras que conduzem a administração pública do país.

Segundo Motta, a discussão sobre o tema “não pode mais ser adiada”. Para o presidente da Câmara, a reforma é uma questão de coragem para enfrentar as verdades do Brasil . “O Estado brasileiro não está funcionando na velocidade da sociedade”, declarou. Ele enfatizou ainda que, a cada dia, a vida real exige mais do que a máquina pública consegue entregar, e “quando o Estado falha, é o cidadão quem paga a conta” . Por isso, Motta considera o tema uma prioridade.

A Reforma Administrativa já estava em debate na Câmara. Em maio deste ano Motta anunciou a criação de um grupo de trabalho para apresentar uma proposta sobre o tema. A intenção do presidente da Casa era votar o texto elaborado por esse grupo ainda no primeiro semestre do ano, mas a proposição não ficou pronta a tempo. O relator, deputado Pedro Paulo (PSD) afirmou que entregaria a proposição em agosto, após o recesso parlamentar.

De acordo com o relator, a Reforma Administrativa será materializada em uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), um Projeto de Lei Complementar (PLP) e um Projeto de Lei (PL), que, juntos, buscam reformar as regras para os novos servidores públicos, com foco em eficiência, transparência e combate a privilégios. O objetivo central é corrigir distorções do funcionalismo público , reduzir desigualdades salariais e dar mais clareza ao serviço prestado à população.

O deputado Pedro Paulo, que também coordena um grupo de trabalho com 17 parlamentares, afirmou que o objetivo da reforma é dar as balizas para um Estado mais eficiente, embora tenha negado que o propósito principal seja o ajuste fiscal. Ele também garantiu que a proposta não pretende acabar com a estabilidade dos servidores que já estão em exercício, nem retirar direitos.

O que propõe a Reforma Administrativa

O relator, deputado Pedro Paulo, apresentou, na última quarta-feira (20), alguns pontos da Reforma Administrativa. Apesar de ter adiantado o teor das propostas, os textos ainda não foram oficialmente protocolados pois, segundo o parlamentar, ainda serão discutidos com as lideranças partidárias. A expectativa é que as proposições sejam cadastradas no sistema da Câmara antes da realização da comissão geral, para que possam ser debatidos no plenário da Casa no dia 3 de setembro.

Segundo o relator, as propostas reúnem cerca de 70 medidas, que devem abranger eixos como estratégia, governança e gestão; transformação digital; profissionalização do serviço público; e combate a supersalários e privilégios. Entre os pontos destacados pelo deputado Pedro Paulo, estão o limite salarial de ingresso na carreira pública, fim das férias superiores a 30 dias e o fim da aposentadoria compulsória como punição para magistrados.

O pacote de propostas estabelece que o salário inicial para o serviço público seja limitado a cerca da metade do que o servidor pode alcançar ao final da carreira. Além disso, elimina os períodos de férias superiores a 30 dias para a maioria dos servidores, com exceções dos professores e profissionais de saúde expostos a riscos. As medidas visa reduzir privilégios e dar mais legitimidade à proposta.

Em relação à aposentadoria compulsória, a intenção é proíbir a aplicação do benefício como sanção máxima para juízes e membros do Ministério Público. Para o relator, essa medida corrige o que chamou de “prêmio para quem comete má conduta”, abrindo a possibilidade de demissão desses profissionais por meio de Processo Administrativo Disciplinar (PAD).

As propostas também preveem a criação de uma tabela nacional que vai da base da carreira até os chefes dos Três Poderes, buscando combater a desigualdade entre servidores; a obrigatoriedade para chefes de governo apresentarem planos de metas com indicadores claros, acompanhados de bônus por desempenho para órgãos e servidores que alcançarem resultados; e a permissão para contratação de pessoal por prazo determinado, mediante processo seletivo simplificado, em casos de calamidade, emergência, paralisação de atividades essenciais, ou necessidades temporárias/sazonais.

Por fim, as propostas alteram os princípios que regem a Administração Pública para incluir a imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, subsidiariedade e boa governança pública, que se somariam aos já existentes de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Impacto no serviço público

Defensores da reforma argumentam que as medidas visam modernizar o Estado, focar no mérito e na eficiência. Medidas como o fim das férias de 60 dias e a tabela única de remuneração são consideradas fundamentais para a reputação da reforma, já que transmitem o pensamento de que o serviço público precisa oferecer mais transparência, eficiência e justiça.

Para o professor Murilo Borsio Bataglia, essas medidas contribuem para “melhorar a percepção pública e a legitimidade do serviço público, aproximando-se da realidade enfrentada pelo trabalhador privado” . “Portanto, a reforma precisa alcançar equilíbrio sem desestimular o ingresso por mérito (concursos)” , reforçou o pró-reitor de Pesquisa, Extensão e Internacionalização da Estácio Brasília e doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

No entanto, a reforma enfrenta resistência de setores que representam os servidores públicos. O Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes), por exemplo, expressou preocupação com o possível aumento de contratações temporárias, que poderiam levar a um “fim indireto” da estabilidade ao substituir servidores concursados por temporários.

Em nota, a Andes criticou os pontos do texto anunciados pelo relator. Para a entidade, a proposta vai “ intensificar a exploração de servidoras e servidores, fragilizar as relações de trabalho, extinguir cargos, contribuir para o adoecimento laboral, o que, como consequência, irá piorar a qualidade dos serviços prestados à população”.

“O Sindicato Nacional alerta que, ao propor medidas que limitem, agravem ou extingam serviços públicos que dão acesso a direitos sociais – como Educação, Saúde, Segurança, Assistência – tanto governo como Parlamento atentam contra a democracia e contra a Constituição Federal. Por isso, é fundamental que a categoria docente, todo o funcionalismo público e a classe trabalhadora em geral sigam atentos e informados sobre as propostas que podem ser votadas ainda neste ano no Congresso Federal, e se mobilizem contra esses ataques”, alertou a Andes.

O Fórum das Entidades Nacionais dos Servidores Públicos Federais (Fonasefe) também desaprova as medidas anunciadas pelo deputado Pedro Paulo. Para a entidade, a proposta quer “impor a lógica de mercado aos serviços públicos, esvaziando a sua função social e precarizando o trabalho dos servidores”.

O Fonasefe chamou a atenção dos servidores para as articulações acerca da proposta, que, segundo o Fórum, “já começaram nos bastidores do Congresso Nacional”. “Não só os servidores, mas todo o povo brasileiro precisa estar atento e mobilizado […] Uma reforma que irá prejudicar não apenas os servidores, mas toda a população que depende dos serviços públicos” , avaliou.

Bataglia avaliou que os legisladores devem priorizar a elaboração de uma proposta equilibrada para conciliar a necessidade de modernização com o princípio da estabilidade e a segurança jurídica dos servidores públicos.

“Uma proposta equilibrada requer cautela ao adotar vínculos de experiência, garantindo avaliações justas e evitando arbitrariedades; limitar cargos de livre nomeação, preservando critérios técnicos e meritocráticos; e ampla participação de entidades representativas e da sociedade civil no debate, para evitar procedimentos precipitados e decisões injustas — aspecto criticado por servidores, que apontam ausência de diálogo” , analisou o doutor em Direito.

Reforma é debatida desde 2020

Em 2020, o governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL), enviou ao Congresso Nacional uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que propunha alterar disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa.

O texto foi recebido pela Câmara dos Deputados em setembro de 2020 e chegou a passar pela análise de uma Comissão Especial, criada exclusivamente para deliberar sobre a matéria. Na ocasião, o parecer do relator, deputado Arthur Maia (União), foi aprovado pelo colegiado.

No texto, o deputado propôs normas gerais sobre criação e extinção de cargos públicos, concurso público, critérios de seleção e requisitos para investidura em cargos em comissão, estruturação de carreiras, política remuneratória, concessão de benefícios, gestão de desempenho, regime e processo disciplinar, cessão e requisição de pessoal.

Em alguns pontos, o texto aprovado pela Comissão Especial se assemelha às propostas anunciadas pelo deputado Pedro Paulo. Entre outras alterações, a matéria vedava a concessão de diversas vantagens a ocupantes de cargos e empregos públicos, cargos eletivos e membros de Tribunais e Conselhos de Contas, incluindo o fim das férias superiores a 30 dias por ano; adicionais referentes a tempo de serviço; aumento de remuneração ou parcelas indenizatórias com efeitos retroativos;licença-prêmio, licença-assiduidade ou outras licenças decorrentes de tempo de serviço, ressalvada a licença para capacitação; e aposentadoria compulsória como modalidade de punição.

Em relação à estabilidade, o texto propunha que o benefício seria concedido após três anos de estágio probatório. Além disso, previa que a perda do cargo poderia ocorrer por decisão judicial transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, ou em decorrência de resultado insatisfatório em avaliação de desempenho (com ampla defesa em processo administrativo), e a possibilidade de o servidor estável perder o cargo se este for extinto por lei específica por se tornar desnecessário ou obsoleto, com direito a indenização.

À época, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) atuou para retirar os juízes e membros do Ministério Público do relatório. Após longos debates, o relator Arthur Maia afirmou que a retirada das duas carreiras se deu por inconstitucionalidade da emenda proposta com esse objetivo.

Na ocasião, a AMB comemorou a retirada, mas ainda se posicionou contrária à Reforma Administrativa. “A nossa luta continua. Lembrando que desde o início consideramos não ser este o momento para fazer alterações tão significativas na Administração Pública brasileira. Além disso, entendemos que o texto em discussão, se aprovado, representa um retrocesso e uma desnaturação das carreiras de Estado” , afirmou Renata Gil, que atuava, em 2021, como presidente da AMB.

Mesmo sem o apoio das entidades representantes dos servidores públicos, o texto foi aprovado na Comissão Especial e deveria ter sido analisado no plenário da Câmara, mas não chegou a ser pautado. Quatro anos depois, o relator da nova proposta, Pedro Paulo, reaproveitou pontos do antigo relatório e um novo debate começou a ser costurado.

Grupo de Trabalho

O grupo de trabalho, criado em maio deste ano, contou com a participação de entidades representantes dos servidores públicos. A Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSPB) colaborou com os trabalhos que levaram à elaboração do pacote de propostas que deve ser protocolado nos próximos dias pelo deputado Pedro Paulo.

O presidente da CSPB, João Domingos Gomes dos Santos, chegou a apresentar ao relator uma proposta de Marco Regulatório das Relações de Trabalho no Setor Público (MRSP). O documento, ao qual o Portal iG teve acesso, aborda a escassez e fragmentação da legislação que rege as relações de trabalho no setor público no Brasil, propondo um arcabouço jurídico abrangente para sanar lacunas e garantir direitos básicos aos servidores.

Para a confederação, um marco regulatório é necessário diante da falta de uma legislação sólida que trate sobre o trabalho na carreira pública. Segundo o texto apresentado por Santos, o Brasil possui mais de cem mil normas que interferem nas relações trabalhistas no setor público, o que leva a uma insegurança jurídica. Além disso, na visão da entidade, os servidores públicos (mais de 12 milhões) são a categoria mais discriminada em questões básicas, não possuindo negociação coletiva, legislação de saúde e segurança do trabalho, nem um sistema para qualificação e proteção social.

Por isso, o MRSP apresentado ao relator da Reforma Administrativa busca garantir direitos desde a organização sindical até a proteção contra automação e o uso de inteligência artificial na administração pública, sendo um projeto considerado estratégico para uma transformação do Estado.

Assim, o marco regulatório elaborado pela CSPB prevê princípios, direitos fundamentais, organização sindical, autorregulação e negociação coletiva, com foco nos interesses dos servidores públicos. Entretanto, ao apresentar os pontos da reforma, o deputado Pedro Paulo não deu indicativos de que acatou as propostas sugeridas pela confederação.

Por que a reforma é importante

Além de combater os privilégios, a Reforma Administrativa é vista como uma das alternativas para reduzir custos do Estado, uma vez que combateria os altos salários.

Para o advogado trabalhista Rafael Medeiros, uma reforma equilibrada proporcionaria um alívio nas contas públicas que poderia ser aplicado em outros setores da sociedade. “É importante reanalisar para corrigir distorções, reforçar a isonomia e liberar recursos para políticas públicas, valorizando o servidor pelo mérito e resultado, não por privilégios automáticos, como muito observamos” , destacou.

“Ao reduzir desperdícios e eliminar privilégios, o Estado passa a gastar melhor, com mais clareza sobre onde e como aplica o dinheiro público, fortalecendo a confiança da sociedade e a legitimidade das instituições” , ressaltou Medeiros.

Segundo o especialista, a revisão de benefícios e vantagens também garante mais equidade ao aproximar servidores da realidade da iniciativa privada. “Uma reforma administrativa que enfrente privilégios históricos é fundamental para garantir eficiência, justiça e equilíbrio fiscal no Estado. Esses benefícios desproporcionais geram distorções, oneram o orçamento e afastam o serviço público do princípio da isonomia” , avaliou.

“Corrigir tais excessos significa valorizar o mérito, racionalizar gastos e devolver legitimidade ao Estado perante a sociedade, permitindo que os recursos sejam direcionados ao que realmente importa: políticas públicas essenciais” , acrescentou o advogado.

Entretanto, Medeiros alertou para os ricos de uma reestruturação profunda, que pode levar ao comprometimento de serviços essenciais à população. “Os principais riscos de uma reforma administrativa profunda estão em comprometer a continuidade dos serviços essenciais e fragilizar a autonomia técnica do funcionalismo. Mudanças mal calibradas podem gerar desmotivação, perda de talentos e abrir espaço para ingerência política, reduzindo a profissionalização do Estado” , salientou.

“Sem equilíbrio, a reforma pode trocar privilégios por instabilidade, comprometendo a eficiência e a confiança social no serviço público. É importante eliminar excessos e equilibrar a balança” , concluiu.

*Com informações de IG