De manhã, ela coloca sua mochila e vai à creche. Na volta, traz um recado das professoras para a “mãe” contando com quem brincou, o que comeu e como se comportou durante todo o dia. A descrição acima poderia ser do dia a dia de qualquer criança em uma escola de educação infantil, mas é de Luna, uma cachorra.
Cada vez mais animais de estimação são colocados na posição de filhos. Para especialistas, fenômeno está inserido em contexto global de queda de natalidade e falta de contatos no mundo real.
A infantilização da pequena Luna, exposta pela frequência na “escola”, é uma das faces mais visíveis de uma humanização excessiva pela qual os animais passam e que se aprofunda nos dias atuais. O tratamento que Luna recebe faz parte de um fenômeno comportamental referente à tentativa de prover uma condição humana a um animal de estimação.
Luna é a cachorra da médica Renata Silva, 26. Com o dia a dia corrido no hospital, faltava tempo para que Renata pudesse dar a atenção que ela julga necessária para o animal. Por isso, a médica optou por inscrever a cachorra, que adotou há seis meses, em uma espécie de creche, onde Luna segue uma rotina quase humana.
“A rotina é parecida com a nossa. Acordamos um pouco mais cedo e ela vai para a creche nas terças e quintas com uma van, que pega os cachorros da mesma região, às 8h, e só retorna entre 18h ou 19h”, conta. A comida de Luna é enviada na mochila e será devorada após horas de recreação com outros cachorros e antes da soneca da tarde.
Ao todo por mês, a médica gasta cerca de R$ 800 em mensalidade da creche, além dos R$ 49 do plano de saúde veterinário e de R$ 200 com alimentação.
“Eu não tenho filhos, mas a projeção de sentimentos é como se fosse uma filha mesmo. Todo cuidado que eu tenho, de diversão, passeio, veterinário, tudo mais, são coisas que eu faria pela minha filha. Eu acredito que, quando eu tiver uma filha de verdade, eu farei isso também a ela”, diz a médica, que às vezes leva Luna a eventos sociais, como bares e encontros das amigas.
Mais cachorros, menos filhos
Segundo a psicóloga Laís Milani, do Instituto Nacional de Ações e Terapias Assistidas por Animais, o ato de humanizar um pet é intrínseco à sociedade, já que os animais estão em um contexto social dos humanos e, dessa forma, acompanham os tutores e adquirem hábitos urbanos, por exemplo.
Para Milani, o processo de humanização vem se tornando mais comum na sociedade devido a uma soma de fatores do mundo moderno. “Temos uma mudança social, com pessoas cada vez mais afastadas das outras, principalmente com o advento da internet, onde falta o contato, e também optando por adiar a maternidade e manter relacionamentos à distância. Assim, as pessoas buscam nos cães, por exemplo, essa proximidade. Os cachorros são muito adaptáveis e, por isso, acabamos colocando-os nessa posição de quase filhos”, diz.
A opinião é compartilhada por Christian Dunker, psicanalista e professor da USP (Universidade de São Paulo). De acordo com o especialista, “pais e mães de pets” surgem em meio a um fenômeno global no qual a sociedade reduz o número de filhos biológicos e os bichinhos passam a fazer parte da família.
Os números mostram essa tendência. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que o número de animais domésticos vem crescendo no Brasil, passando de 132,4 milhões de animais em 2013 para 144 milhões no ano passado.
Esse não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. A tendência dos pais de pet é mundial. Segundo a consultoria Nielsen, em 2016, 95% dos proprietários de animais de estimação os consideravam como parte da família nos EUA. Já no Brasil, de acordo com uma pesquisa feita pela empresa de serviços para cães DogHero, em parceria com o portal Zap Imóveis, 78% dos entrevistados consideram o animal de estimação como um filho.
Sociedade em transformação
Ao mesmo tempo em que os animais passam a fazer parte da família e em maior número, há uma queda no número de filhos dos casais. Segundo o IBGE, enquanto na década de 1970 a taxa de fecundidade era de seis filhos por mulher, atualmente ela gira em torno de 1,6 a 1,8 filho por mulher.
Para Marcio Mitsuo Minamiguchi, gerente de projeções e estimativas da população do IBGE, essa queda no número de filhos é resultado de mudanças estruturais e econômicas pelas quais a sociedade passou.
“O Brasil de 50 anos atrás passava por um forte período de urbanização, com uma economia baseada na agricultura de subsistência e que passa a ser focada em uma sociedade urbana, no setor de serviços. Isso traz mudanças bastante significativas no próprio comportamento reprodutivo da sociedade, que começa a reduzir o número de filhos”, diz.
Minamiguchi também ressalta que houve uma mudança em relação os custos financeiros da criação de filhos. “Atualmente eles são dependentes dos pais por mais tempo, e, também, todo investimento em filhos acaba sendo maior do que no passado”, afirma. Há ainda outros fatores, como a emancipação feminina, o maior acesso a meios contraceptivos e início do chamado planejamento familiar, que influenciaram na queda da natalidade, de acordo com o pesquisador.
Os riscos da humanização excessiva
Os pets são ótimos companheiros e sempre estiveram ao lado dos humanos no desenvolvimento da sociedade. Porém, a humanização, quando excessiva, pode trazer problemas não só aos bichos, mas também aos donos.
De acordo com Dunker, a felicidade requer uma certa diversidade de contatos humanos que, quando evitados, podem fazer com que a pessoa perca a possibilidade de se relacionar de forma efetiva com outro ser. Isso, segundo o psicanalista, deságua em um amor narcisista, onde ninguém é suficientemente bom para prover qualquer desejo.
“O amor narcisista não é, necessariamente, uma patologia já que todo amor tem que ser um pouco assim. A questão começa quando a humanização de um pet acaba substituindo o amor de objeto, o amor por alguém mais próximo”, pontua. Por isso, segundo Dunker, colocar um animal no lugar de um relacionamento humano pode demonstrar uma necessidade de proteção e um medo da frustração que qualquer amor pode causar.
“Os animais não crescem, não nos abandonam, não reclamam. Eles oferecem uma série de facilidades que vão favorecendo um certo narcisismo humano, que é a busca por um amor dadivoso, de alguém que está sempre disponível, sempre querendo carinho, sempre disponível. Isso é um amor de ‘baixa qualidade’ e pode trazer problemas de expectativa de como cada um ama e quer ser amado”, acrescenta Dunker.
De acordo com o professor da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, Andrigo Barboza de Nardi, o excesso dessa humanização dos pets pode ser prejudicial também ao animal. “Eu defendo que os pets, cães e gatos, sejam muito bem tratados. Mas existem exageros em algumas situações, tentando transformar o animal em um ser humano. Essa tentativa de humanização pode, inclusive, comprometer o próprio comportamento do animal, seus desejos, vontades, sua forma de se portar e, assim, sua saúde”, diz.
Segundo Nardi, profissionais já observam consequências da privação do comportamento natural de um animal.
“Temos observado alterações e distúrbios de comportamento se manifestando no caso de doenças, animais mais agressivos do que naturalmente, ou mesmo animais que apresentam coceira o tempo todo, problemas cutâneos, que claramente estão ligados ao estresse gerado por ele fazer tudo o que o tutor faz, privando-o seu comportamento natural”, afirma.
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