Pessoas em luto carregam o caixão da ativista trans Cecilia Gentili após o funeral, em Nova York - Foto: Sarah Blesener / The New York Times

Os bancos da Catedral de Saint Patrick estavam lotados na semana passada para um evento sem precedentes: o funeral de Cecilia Gentili, uma ativista e atriz transgênero, ex-profissional do sexo e autodeclarada ateia. A homenagem foi tanto uma celebração de sua vida quanto um teatro político.

Mais de mil pessoas, centenas das quais eram trans, chegaram com roupas ousadas —minissaias brilhantes e tops de alcinha, meias-arrastão, estolas de pele suntuosas, pelo menos uma, inclusive, feita de notas de US$ 100. Cartões de missa e uma foto perto do altar mostravam Gentili cercada pelas palavras espanholas para “travesti”, “prostituta”, “abençoada” e “mãe” acima do texto do Salmo 25.

O fato de a Catedral de St. Patrick receber o funeral de uma ativista trans conhecida por sua defesa em prol de profissionais do sexo, pessoas transgênero e pessoas vivendo com HIV, pode surpreender alguns.

Há pouco mais de uma geração, durante o auge da crise da Aids, a catedral foi um ponto de conflito entre ativistas gays e a Igreja Católica, cuja oposição à homossexualidade e ao uso de preservativos enfureceu a comunidade. A imponente construção neogótica tornou-se palco de protestos que chamaram a atenção da mídia nos quais ativistas se acorrentavam aos bancos e se deitavam nos corredores.

A igreja suavizou seu tom sobre essas questões nos últimos anos, e o cardeal atual de Nova York, Timothy Dolan, disse que a igreja deveria ser mais acolhedora com as pessoas gays.

Joseph Zwilling, porta-voz da Arquidiocese Católica Romana de Nova York, não respondeu a perguntas sobre se a igreja estava ciente do histórico de Gentili quando concordou em receber seu funeral.

Na quarta-feira (14), Zwilling disse que “se um pedido de funeral de um católico chega, a catedral faz o possível para acomodar”.

A cidade de Nova York abriga aproximadamente uma dúzia de paróquias católicas amigáveis aos gays, mas a Catedral de Saint Patrick, sede da arquidiocese, não é uma delas.

Ceyenne Doroshow, que organizou o funeral, disse que os amigos de Gentili —que morreu em 6 de fevereiro aos 52 anos— queriam que o velório fosse na Catedral de Saint Patrick porque “é um ícone, assim como ela”. Mas Doroshow acrescentou que não mencionou que Gentili era trans ao planejar com a igreja.

“Eu meio que mantive isso em segredo.”

A morte de Gentili ocorreu em um momento politicamente tenso para pessoas trans, à medida que estados em todo o país restringem seu acesso aos cuidados de saúde e serviços públicos.

Grupos religiosos têm desempenhado um papel ativo nesses esforços, mas ao mesmo tempo o papa Francisco deu passos em direção à inclusão, dizendo em 2023 que pessoas trans podem ser batizadas, servir como padrinhos e ser testemunhas em casamentos na igreja.

Zwilling disse que não sabia se Gentili havia frequentado missas na catedral, ou se outras pessoas trans haviam tido seus funerais lá. Mas ele disse que “um funeral é uma das obras de misericórdia corporais”, uma parte do ensinamento católico que a igreja descreveu como “um modelo de como devemos tratar todos os outros, como se fossem Cristo disfarçado”.

As observações do padre não abordaram os detalhes da vida de Gentili. Quando o serviço começou, o padre Edward Dougherty disse que era a maior multidão que ele havia visto desde o domingo de Páscoa. Esse comentário provocou a primeira de várias rodadas de aplausos.

Em determinado momento, um amigo de Gentili subiu ao púlpito para rezar pelo acesso aos cuidados de saúde que afirmam sua identidade de gênero. Em outro momento, uma pessoa ofuscou um padre que cantava “Ave Maria”, mudando a letra para “Ave Cecilia”. Em seguida, ela dançou pelos corredores, lenços vermelhos girando ao seu redor.

Várias pessoas que compareceram a uma missa na catedral horas depois disseram que estavam satisfeitas pela igreja neogótica ter sediado o funeral de Gentili.

Carlos Nunez, 43, que mora em Manhattan e trabalha em atendimento ao cliente, disse que achou o funeral apropriado. “Por que não?”, questionou ele. “Todo mundo tem o direito de ir à igreja. Todo mundo é filho de Deus.”

Michael Minogue, 67, disse que reconsiderou algumas de suas próprias opiniões depois que um amigo morreu de Aids na década de 1980. Ele disse que achou benevolente por parte da igreja e das pessoas em luto que Gentili tenha tido seu funeral na catedral. “Isso significa um pouco mais de tolerância de ambos os lados.”

Gentili era ateia, mas sua peça de uma mulher só, “Red Ink”, explorava seus encontros com o divino em lugares inesperados.

Em uma entrevista em 2023, ela disse que “nunca teve oportunidades de experimentar uma fé que a acolhesse plenamente” como pessoa trans, mas recentemente começou a frequentar cultos em várias igrejas novamente.

O reverendo James Martin, um conhecido escritor jesuíta que defende uma abordagem mais inclusiva da igreja, disse que era “maravilhoso” a Catedral de Saint Patrick ter concordado em realizar o funeral de Gentili. “É um lembrete poderoso, durante a Quaresma, de que as pessoas LGBTQ+ são tão parte da igreja quanto qualquer outra pessoa”, disse ele. “Eu me pergunto se isso teria acontecido há uma geração.”

Na época, a crise da Aids em Nova York mergulhou as relações conturbadas da igreja com a comunidade gay e trans da cidade em um novo patamar.

No final dos anos 1980, o cardeal John O’Connor, líder da arquidiocese, proibiu um grupo católico gay de se reunir em sua igreja e disse que a Aids era transmitida por “aberrações sexuais ou abuso de drogas”. Ele também afirmou que o conselho de usar preservativos para interromper a propagação da doença era baseado em mentiras.

Em 1989, mais de 4.000 pessoas protestaram do lado de fora da Catedral de Saint Patrick, e os manifestantes entoaram cânticos e se acorrentaram aos bancos dentro da igreja. A polícia prendeu 111 pessoas durante o protesto, que se tornou um marco na história da comunidade gay da cidade.

Os organizadores do funeral de Gentili disseram que esperavam que ele fosse lembrado como um momento igualmente importante para a comunidade.

E, enquanto os carregadores levavam o caixão de Gentili de volta pelo corredor no final do culto, os cânticos ecoaram novamente pela nave da Catedral de Saint Patrick. “Cecília! Cecília! Cecília!”

*Com informações de Folha de São Paulo