Em meio ao momento mais crítico da pandemia no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) questionou a alta ocupação de hospitais -muitos estados estão à beira do colapso- e disse que é preciso separar os internados por Covid-19 de outras doenças.
“Parece que só morre de Covid. Você pega, você pode ver… Os hospitais estão com 90% das UTIs ocupadas. Quantos são de Covid e quantos são de outras enfermidades?”, questionou o presidente a um grupo de apoiadores, na saída do Palácio da Alvorada.
A fala de Bolsonaro sugere que pessoas ingressadas por outras razões poderiam estar contabilizadas nas taxas de ocupação de hospital que têm sido divulgadas, o que é incorreto. Os números veiculados sobre a lotação hospitalar são exclusivos para leitos de UTI destinados ao tratamento do coronavírus.
As declarações foram transmitidas por um site bolsonarista, em um vídeo com edição e cortes na fala do presidente.
“Lógico que a gente quer solução, a gente lamenta qualquer morte. Agora por que existiu lockdown? Foi março, abril [do ano passado], não era para alongar curva? Ninguém esqueceu, pessoal não fala mais em alongar curva. Não era para não ter uma grande quantidade de pessoas infectadas para não ficar gente na porta do hospital?”, disse.
O caso de Manaus mostrou que apesar de um grande número de pessoas infectadas inicialmente é possível haver um novo colapso diante do relaxamento das medidas de isolamento e de proteção -como o próprio presidente, que é contra o lockdown, defende.
Com base em dados da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (AM), o infectologista Júlio Croda afirmou à Agência Fapesp que 99% dos novos casos notificados em Manaus são de pessoas que nunca antes tiveram a doença, ou seja, não são reinfecções.
“Nesta segunda onda, a maioria dos pacientes são das classes A e B, que conseguiram se manter em isolamento durante a primeira onda. A prova disso é que o sistema privado de saúde sofreu esgotamento antes do público -diferentemente do que ocorreu em abril de 2020. Após o relaxamento das medidas de controle, o vírus voltou a circular com maior intensidade e atingiu a parcela da população que estava mais suscetível”, afirma Croda, que é pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
O Brasil tem registrado recordes diários no número de mortos pela Covid-19. O país contabilizou 2.736 mortes por Covid na quarta (17), o segundo maior valor na pandemia, e completou 19 dias seguidos de recordes na média móvel de óbitos, que agora chegou a 2.031. Com os novos números, o total de mortos pela doença no Brasil chegou a 285.136 óbitos.
Diante dos danos à popularidade do governo causados pelo aumento de mortes e pelo lento ritmo de vacinação, Bolsonaro ensaiou nas últimas semanas um gesto de moderação. Ele e seus auxiliares têm abraçado a defesa da ampla imunização da população, na contramão da retórica antivacina adotada no ano passado pelo presidente.
Na conversa com apoiadores, no entanto, Bolsonaro voltou a criticar laboratórios que negociaram contratos com o governo federal.
Ao se referir a comentários que recebe em redes sociais com cobranças pela vacina, Bolsonaro disse que quem faz esse tipo de demanda é “mal-intencionado” ou “imbecil”. “Daí o cara fala ‘quero vacina, cadê a vacina’? Ou o cara é mal-intencionado, mau-caráter ou é imbecil. Ele não consegue acompanhar, impressionante. Pô, critica em cima da matéria, justo, sem problema nenhum, sou passível de erro”, declarou.
Em outro trecho, Bolsonaro afirmou que querem “derrubar o governo”. “Acho que é um dos raros países do mundo onde querem derrubar o presidente é aqui. Eles não apresentam a solução. Quando eu digo me apresente um país onde está dando certo o combate à Covid, não tem. Esses que querem me derrubar, o que você faria no meu lugar? Ah, comprar vacina. Onde tem vacina para vender? Olha o que aconteceu agora: não quero falar marca, tem uma vacina que tem uns dez países que não vão aplicar mais. Tem um cara inteligente [que] ligou para mim [e disse]: ‘por que você não compra essa vacina?’ Eu falei, cara se esses países não estão aplicando, no mínimo é um lote suspeito”, disse.
Bolsonaro não especificou a qual vacina se referia. Nos últimos dias, 19 países europeus suspenderam a aplicação da vacina de Oxford/AstraZeneca para se certificarem de que elas não têm ligação com efeitos colaterais mais graves. A OMS (Organização Mundial da Saúde), porém, ressaltou que os benefícios do imunizante superam eventuais riscos.
Apesar da fala de Bolsonaro, essa vacina específica foi comprada pelo governo federal, está sendo produzida pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e aplicada no Brasil.
O presidente também fez referência às negociações com a Pfizer, outro flanco de críticas pelas recusas de ofertas de doses feitas pelo governo no ano passado.
“Quando não comprei da Pfizer no ano passado, o pessoal me criticou. Agora [a]o cara que criticou eu pergunto: você por acaso leu ali o contrato? O cara é ignorante e quer criticar. O contrato, entre as coisas que estavam, [tinha] ‘não nos res ponsabilizamos por qualquer efeito colateral’. Como vou comprar uma vacina dessa? Ninguém podia entrar com ação contra eles [Pfizer] aqui. Tive que passar um recurso lá fora para bancar ações porventura movidas contra a empresa. Um negócio que nunca se viu na vida isso aí”, afirmou.
Após o Congresso Nacional aprovar uma lei autorizando que o governo assumisse essas responsabilidades, o Planalto anunciou a compra de doses da vacina da farmacêutica americana, hoje amplamente usada em países como Estados Unidos e Israel.
Bolsonaro associou ainda fez novas críticas à eficácia da vacina Coronavac, aprovada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em janeiro para uso emergencial. “Como é emergência [a Anvisa] acaba dando sinal verde, como deu para a Coronavac, com 50% não sei quanto de chance [de eficácia]. Um pouquinho a mais e estaria abaixo de 50%”, disse.
Trunfo político do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), adversário de Bolsonaro, a Coronavac é hoje o principal pilar da vacinação que ocorre no país.
Bolsonaro chegou a determinar que o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, não comprasse o imunizante, mas teve que recuar após pressão de governadores e prefeitos. (FOLHAPRESS)