Luciana Souza, 51, cresceu em uma comunidade de pescadores em Regência Augusta, no município de Linhares (ES). Em 2015, viu o rio Doce, que banha sua cidade, ser contaminado pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Mariana (MG). Ela é uma das representantes da Rede Vozes Negras pelo Clima na COP29, em Baku, no Azerbaijão.
A rede formada por mulheres negras quer pautar o racismo ambiental na conferência climática, alinhando-a a outras organizações brasileiras que participam do evento, como a PerifaConnection, o Observatório das Baixadas, a Coalizão Negra por Direitos e Geledés.
A menos de uma semana da celebração da Consciência Negra, nesta quinta-feira (14), o Pavilhão Brasil na COP29 vai receber dois painéis sobre como as pessoas negras e indígenas são prejudicadas pelos desastres ambientais. Um deles tratará do racismo ambiental nas favelas. O outro, sobre adaptação antirracista.
Segundo Luciana Souza, a prioridade da rede é garantir que as políticas climáticas, incluindo o seu financiamento, considerem questões de justiça social, gênero e raça. “É preciso reconhecer as imensuráveis desigualdades sociais vivenciadas pelas populações periféricas, faveladas, afrodescendentes e indígenas”, afirma.
A tragédia de Mariana, que afetou Luciana, é considerada um dos piores desastres ambientais do Brasil e impactou imediatamente pessoas negras, segundo estudo da Universidade Federal de Juiz de Fora, publicado no final de 2015.
O grupo de pesquisa Poemas (Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade) identificou maioria negra nas comunidades mais próximas da barragem, que foram atingidas diretamente pela lama. Entre elas, Bento Rodrigues (84% de pretos e pardos), Paracatu de Baixo (80%) e Gesteira (70%).
Os pesquisadores concluíram que havia “indícios de racismo ambiental” na distribuição dos riscos associados à barragem e sugeriram um estudo aprofundado sobre a composição racial das comunidades expostas a possíveis falhas em estruturas similares.
O conceito de que minorias étnicas enfrentam os maiores riscos ambientais originou o termo “racismo ambiental”, usado pela primeira vez pelo químico Benjamin Franklin Chavis Jr, na década de 1980. Ele protestava contra depósitos de resíduos tóxicos acumulados no condado de Warren (EUA), onde a maioria da população era negra.
O que é racismo ambiental
Apesar de antigo, o termo popularizou-se recentemente no Brasil. Dados do Google Trends mostram que o interesse por racismo ambiental atingiu pico de popularidade na plataforma em janeiro de 2024, quando a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, usou o termo para referir-se às inundações que atingiram o Rio de Janeiro e a Baixada Fluminense.
Na época, sua declaração foi ironizada nas redes sociais por políticos da direita, como os deputados federais Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Mario Frias (PL-SP), e por seus seguidores.
A Folha conversou com pesquisadores para entender o termo que tem sido aplicado a vários desastres ambientais no Brasil.
Segundo o professor Adilson Moreira, da Faculdade de Direito da FGV em São Paulo, o racismo não acontece apenas de forma “intencional, de um indivíduo contra outro”. Deve ser considerado como desvantagens impostas a um grupo racial específico e produzidas por uma série de fatores sociais.
O racismo ambiental, então, seria um conjunto de práticas sociais que, direta ou indiretamente, causam impacto negativo e desproporcional nas condições climáticas e ambientais vivenciadas por pessoas negras e indígenas no país.
De acordo com um relatório divulgado em 2022 pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas), moradores de favelas e periferias são vítimas de tragédias ambientais em uma proporção 15 vezes maior do que os residentes em áreas seguras. No Brasil, as pessoas negras representam 73% dos moradores de favelas, segundo dados do Censo Demográfico de 2022, divulgados pelo IBGE.
O problema, argumentam os especialistas, não está apenas nos desastres ambientais, como inundações e rompimentos de barragens. Mas na maior vulnerabilidade das pessoas negras e indígenas a esses eventos.
Isso acontece também por causa do “racismo intergeracional”. Moreira explica que as práticas discriminatórias que afetam um grupo em um determinado momento histórico —como deu-se no período da escravidão— tendem a afetar seus descendentes ao longo da história. Esse componente dificulta a ascensão social e a participação de integrantes desses grupos nos processos políticos decisórios.
Moreira resume o racismo ambiental como produto do acúmulo de desvantagens que existem nas diferentes dimensões da vida de pessoas negras ao longo do tempo e que tornam mais vulneráveis aos desastres ambientais.
Racismo ambiental ou injustiça ambiental?
Outro termo cunhado para afirmar que grupos já vulneráveis ficam ainda mais expostos aos desastres ambientais é “justiça ambiental”, que engloba pessoas negras, mulheres, crianças e idosos, entre outros.
Marcos Bernardino de Carvalho, professor de gestão ambiental na USP (Universidade de São Paulo), afirma que a expressão abarca diversas injustiças. “Mas quando você vê que, reiteradamente, as parcelas mais atingidas por crises socioambientais são majoritariamente compostas por pessoas pretas ou pardas, isso chama a atenção”, afirma.
“O racismo estrutural que existe socialmente se reproduz também no âmbito das consequências ambientais”, diz Carvalho.
Durante a tragédia das chuvas que inundaram o Rio Grande do Sul, em maio, pesquisa Datafolha mostrou que mais da metade (52%) dos pretos nos municípios afetados relataram algum tipo de perda com as enchentes. Entre os pardos, 40% citaram algum tipo de prejuízo. Já na população branca, a proporção foi de 26%.
“As populações marginalizadas, no caso do Brasil e de outros países, são majoritariamente negras. Acho que não é demais chamar atenção para isso e dar ênfase a essa questão”, afirma Carvalho.
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