Vacas leiteiras estão entre os animais que mais sofrem com o calor ambiental - Foto: iStock

A pecuária brasileira está diante de um desafio sem precedentes: adaptar-se a um clima cada vez mais instável, marcado por ondas de calor intensas, secas prolongadas e chuvas imprevisíveis. O impacto das mudanças climáticas sobre bois, porcos e galinhas já não é uma previsão distante, mas uma realidade que ameaça a produtividade, o bem-estar animal e até a segurança alimentar.

Um estudo produzido por pesquisadores da Esalq-USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo), baseado em 12 experimentos realizados em diferentes países e climas, aponta que o gado leiteiro está entre os animais mais afetados pelas alterações do clima no Brasil.

“A vaca leiteira tem metabolismo muito intenso, e a própria produção de leite gera grande quantidade de calor interno. Quando somamos isso ao calor ambiental, o desafio térmico aumenta bastante. Por isso, reduções de 20% a 30% na produção de leite em períodos críticos são comuns”, explica Robson Silveira, pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Ambiência (Nupea) da Esalq-USP, que participou do estudo.

Segundo Robson, quando os animais enfrentam calor elevado, a primeira resposta é reduzir o consumo de alimento para diminuir o calor metabólico. Isso altera o metabolismo e faz com que uma parte importante da energia, que normalmente seria usada para produzir carne, leite ou ovos, seja desviada para a termorregulação.

Ruim para todos

Segundo Adriana do Carmo, professora de melhoramento genético da Escola de Veterinária e Zootecnia da UFG (Universidade Federal de Goiás), os animais mais castigados serão aqueles menos tolerantes ao calor e à sazonalidade das pastagens.

“Mas é importante destacar que até raças adaptadas aos trópicos, como as zebuínas, sofrem quando são expostas a eventos climáticos extremos por longos períodos”, diz Adriana do Carmo.

Beatriz Garcia do Vale, pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Zootecnia da UFV (Universidade Federal de Viçosa), reforça que animais em fase de lactação e de alta produção são, em geral, mais sensíveis, porque a termogênese metabólica é elevada.

“Em contrapartida, raças naturalizadas brasileiras são mais tolerantes ao calor que Bos taurus (europeus), devido a adaptações anatomorfofisiológicas (cor de pele/pelame, espessura de pele, capacidade de sudorese, espessura de toucinho, condutância térmica)”, afirma Beatriz.

Robson Silveira, da Esalq-USP, revela que análises apontaram que, no mundo, os pequenos ruminantes do hemisfério Norte serão os mais impactados pelas mudanças climáticas.

“Nossas projeções mostram que, até 2100, esses animais podem ter um aumento de até 68% na frequência respiratória em relação aos ruminantes do Hemisfério Sul”.

A Fazenda Santa Silvéria, em Piratininga (SP), abriga cerca de 1.600 cabeças de gado em seus 1.200 hectares – Foto: Divulgação / Fazenda Santa Silvéria

A frequência respiratória é o número de movimentos respiratórios (inspirações e expirações) que um animal realiza por minuto. Nos estudos de zootecnia, ela é usada como um indicador fisiológico de estresse térmico, já que aumenta quando o animal precisa dissipar calor para manter o equilíbrio interno

Galinhas de postura (aquelas destinadas exclusivamente à produção de ovos) e codornas também demonstraram alta sensibilidade térmica, com possibilidade de elevação de até 40 movimentos respiratórios por minuto.

“Em contraste, cabras e bovinos de corte zebuínos, como o Brahman, apresentaram plasticidade fenotípica, pois praticamente não apresentaram aumento na frequência respiratória nas projeções de 2050, 2075 e 2100”, aponta Silveira.

Pontos de atenção

Animais que buscam sombra com frequência e estão constantemente ofegantes ou doentes podem estar pedindo ajuda.

Nos últimos anos, foram relatadas mortes de muitos animais ou até mesmo de rebanhos inteiros em diversos países durante ondas de calor ou geadas.

No Brasil, as ondas de calor de 2023 e 2024, no Sul e no Centro-Oeste, resultaram na morte de bovinos por hipertermia e em quedas bruscas na produção de leite. No extremo oposto, episódios de frio intenso no Sul levaram à morte de bezerros por hipotermia após geadas consecutivas.

De acordo com Jansller Genova, professor do DZO (Departamento de Zootecnia) da UFV (Universidade Federal de Viçosa), indicadores produtivos, como a redução de ganho de peso, fisiológicos, como aumento da frequência respiratória, e reprodutivos ajudam na identificação de quando o rebanho está pedindo socorro.

“Além do efeito direto sobre os animais, há impactos indiretos também, como degradação de pastagens e maior pressão sanitária (proliferação e disseminação de microrganismos patogênicos e doenças)”, aponta Jansller.

Nas pastagens, o estresse hídrico também afeta a vegetação destinada ao consumo dos animais, dificultando sua digestão.”O resultado é a queda no desempenho produtivo e reprodutivo dos rebanhos”, diz Adriana do Carmo, da UFG.

Para o futuro

Robson Silveira, pesquisador da Esalq-USP, afirma que o aumento da temperatura média e a maior frequência de ondas de calor, que provocam estresse térmico contínuo nos animais, são os fatores que mais devem impactar os rebanhos nos próximos anos.

“Os modelos conservadores que utilizamos projetam um aumento de até 3°C até o fim do século; nesse cenário, nossos resultados indicam que a homeostase de aves, codornas e vacas de leite já foi seriamente comprometida nas simulações. Não incluímos suínos adultos, mas, com base na literatura, eles provavelmente estariam entre os mais afetados”, diz Silveira.

Ao analisar dados do semiárido nordestino, os pesquisadores constataram que, de modo geral, o ambiente térmico impactou pouco as respostas fisiológicas dos ruminantes já adaptados a esse clima.

“No entanto, a raça influenciou a resposta: vacas Girolando, que contêm sangue taurino e foram selecionadas para média e alta produção de leite, mostraram-se mais sensíveis ao calor do que vacas Sindi e ovelhas Morada Nova, ambas adaptadas às condições equatoriais”, diz Silveira.

Segundo o pesquisador da Esalq-USP, isso reforça a importância de valorizar e preservar raças locais no Brasil, pois apresentam maior capacidade de suportar calor, restrição nutricional e desafios sanitários.

Como proteger o rebanho

Pesquisadores destacam que as estratégias devem ser específicas para cada espécie e sistema de produção:

Na pecuária de leite, uma alternativa bem-sucedida tem sido combinar cruzamentos com raças locais e investir em instalações que realmente façam diferença no conforto dos animais (por exemplo, ventiladores, aspersores e nebulizadores). Isso ajuda o rebanho a lidar melhor com o calor e mantém a produção sustentável.

Para pequenos ruminantes e bovinos de corte, recomenda-se a adoção de sistemas silvipastoris, que proporcionam sombra e rendem madeira extra.

Já para aves e suínos, o indicado é a adoção de ambientes controlados, com ventilação, resfriamento; além de evitar colocar animais demais no mesmo espaço, o que aumenta o estresse e piora os efeitos do calor. “Esses animais só toleram temperaturas altas quando o ambiente é bem planejado para garantir conforto e bem-estar”, ressalta Robson Silveira.

Jansller Genova, da UFV, também ressalta a importância do investimento em um bom sistema de nutrição, com acesso irrestrito à água de boa qualidade, além de planejamento forrageiro e manejo do solo/pasto.

“O manejo adaptativo dos rebanhos já não é mais apenas uma recomendação, mas uma necessidade. O clima está mudando rápido, e os sistemas de produção precisam acompanhar. Quem não se adaptar tende a sofrer perdas crescentes”, alerta Adriana do Carmo, professora da UFG (Universidade Federal de Goiás).

*Com informações de Uol