
Um juiz do 2º Juizado Especial Cível de João Pessoa (PB) foi alvo de uma denúncia de racismo religioso após negar uma indenização por danos morais para uma mãe de santo. Ela entrou com um processo contra um aplicativo de transporte após um motorista se negar a buscá-la em um terreiro de candomblé. No entendimento do magistrado Adhemar de Paula Leite Ferreira Neto, foi Lúcia de Fátima Batista de Oliveira quem praticou o ato de intolerância, e não o contrário.
A decisão foi proferida no final de setembro deste ano. Mãe Lúcia, como é conhecida, pediu um carro por aplicativo em março de 2024 para ir à uma consulta. Então, ela avisou ao motorista que o ponto de partida era o terreiro de candomblé, com uma placa amarela na frente.
Ao receber a mensagem, o motorista respondeu: “Sangue de Cristo tem poder, quem vai é outro kkk, tô fora”. Ela registrou um boletim de ocorrência e ajuizou uma ação contra a Uber pedindo indenização pelo ocorrido.
A sentença
Depois de mais de um ano, o processo foi sentenciado. Na decisão, Ferreira Neto indeferiu a indenização e apontou que o motorista está no “uso regular do seu direito de exercer sua fé sem ser constrangido por quem quer que seja, e sem receber imposições ou censuras de seguidores de fés diversas”.
Ao sustentar que o motorista apenas exerceu sua liberdade de culto, o magistrado afirmou que a mãe de santo, ao considerar ofensiva a fala do motorista, foi quem praticou intolerância religiosa.
“Ao afirmar considerar ofensiva a ela a frase ‘Sangue de Cristo tem poder’, denota com tal afirmação que a intolerância religiosa vem dela própria. E, não, do motorista inicialmente selecionado pela ré para transportá-la. A sensibilidade, como cediço, é uma característica individual e dependente do contexto. Porém, não pode ser exteriorizada e imposta ao ponto de calar quem supostamente a fere em exercício regular de direito. Se, ìntimamente, o crente ofende-se com o que considera ofensa à sua crença, a tolerância o impele a afastar-se do convívio com o ofensor. E, não, a agredi-lo por isso“, declarou na decisão.
O juiz também afirmou que a mensagem possuía três frases e “a última delas mesmo considerando-se o baixo nível cultural da maioria das pessoas, em especial das do Brasil”, não demonstra que o motorista estaria zombando de Lucia.
“A própria ré [a Uber], mesmo assumindo em parte as demandas da autora [a mãe de santo], defende o motorista inicialmente selecionado para realizar o transporte da autora e afirma que ‘a mensagem encaminhada à Autora pelo motorista, esta não continha xingamentos diretos, ameaças, calúnias ou expressões de baixo calão’”, apontou o magistrado.

Motorista se negou a buscá-la em um terreiro de candomblé – Foto: Arquivo pessoal
O advogado de Lúcia de Fátima, João do Vale afirmou que a decisão proferida pelo magistrado “revela que o contrato social, ou melhor o Contrato Racial conforme Mills continua em voga privilegiando a uns em detrimento de outros”. Ainda segundo a defesa, a setença ainda expõe a institucionalização do amparo estatal “a práticas discriminatórias por vezes veladas contra os grupos marginalizados”.
“Evidencia ainda que apesar de todo o avanço trazido pela Constituição e pelas Leias da República há um séquito de adoradores da injustiça e da perpetuação dos privilégios. Porém agora as ações destes estão sob a luz do dia e felizmente recebendo a atenção devida da sociedade civil e das autoridades constituídas”, declarou.
Denúncia ao MP
O Instituto de Desenvolvimento Social e Cultural Omidewa, questionou a sentença e afirmou que o juiz desconsidera que “a dor e o dano não dependem de uma prova de intenção maliciosa, mas da consequência de um ato de violência disfarçado de liberdade religiosa”.
O Instituto também aponta que a decisão “legitima o preconceito e nega a existência do dano”. O caso foi encaminhado ao Ministério Público da Paraíba (MPPB), que abriu um procedimento para apurar o caso.
A reportagem teve acesso ao procedimento, em que a promotora Fabiana Lobo determina as seguintes medidas:
-
Que uma cópia do processo seja encaminhada para Corregedoria Nacional de Justiça e para a Corregedoria de Justiça do Tribunal de Justiça da Paraíba, análise e adoção de possíveis medidas sobre a conduta do juiz e o desrespeito ao Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial;
-
Ofício à Delegacia de Repressão aos Crimes Homofóbicos, Étnico-Raciais e Delitos de Intolerância Religiosa (DECHRADI) para levantamento de inquéritos sobre racismo religioso na Paraíba, no prazo de até 15 dias úteis;
-
Ofício ao Centro Estadual de Referência da Igualdade Racial João Balula, pedindo informações sobre registros de casos semelhantes entre 2024 e 2025, também no prazo de 15 dias úteis.












