Capa do livro 'Amoras', de Emicida (Foto: Ilustração de Aldo Fabrini)

Obra “Amoras” foi riscada com mensagens contrárias à religião de matriz africana. Advogada vê crime e escola decide substituir obra e conversar com família.

O g1 entrou em contato com a mulher que escreveu na obra, que não quer ser identificada. Ela contou que não considera o caso como intolerância religiosa, pois escreveu no livro que ela mesma comprou e não se negou a leva-lo para a escola. Além disso, ela disse que convive com pessoas de diversas religiões, como candomblé e espiritismo.

“Estas ideologias com origem africanas, com base em religião anticristã é blasfêmia contra o Deus vivo, vulgo o Criador”, escreveu à caneta em uma das páginas do livro.

O g1 também entrou em contato com a advogada criminalista e Conselheira Seccional da Ordem de Advogados do Brasil (OAB) da Bahia, Dandara Amazzi Lucas Pinho, que informou que o caso pode ser considerado racismo religioso. Ela reforçou que todas as escolas brasileiras, públicas ou particulares, são obrigadas pelo Ministério da Educação (MEC) a implementar o ensino da história afro-brasileira e indígena nas escolas.

“O livro que deveria nortear um comportamento benéfico em sociedade acaba sendo interpretado de maneira equivocada e sendo uma arma para violentar pessoas que possuem um seguimento religioso distinto de quem fez as ‘notas de rodapé’. Conseguimos perceber de forma muito nítida como o racismo religioso está penetrado em cada linha subscrita”, disse.

O livro é indicado para crianças de cinco anos e conta a história de uma menina negra que está aprendendo a se reconhecer no mundo. Em conversas com seu pai, ela aprende sobre culturas e religiões diferentes e também é apresentada a grandes ícones das lutas dos povos negros, como Zumbi, Martin Luther King e Malcolm X.

O livro do rapper foi encontrado com as declarações nesta segunda-feira (6). De acordo com a escola Clubinho das Letras, o livro, que já era adotado pela unidade de ensino, foi indicado como sugestão de obras didáticas para o projeto da Ciranda Literária. Nele, as crianças compram livros sugeridos, levam para a escola e trocam entre os colegas.

Na sexta-feira (3), aconteceu a primeira edição do projeto e, após o final de semana, a unidade de ensino foi alertada por um responsável que o livro estava com textos escritos à mão com mensagens preconceituosas. A escola disse que é contra as declarações que foram escritas no livro.

Ainda segundo a escola, a obra será reposta para que os alunos continuem tendo acesso ao conteúdo do livro e a família será chamada para uma conversa.

Além de “Amoras”, Emicida escreveu outro livro intantil chamado “E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas”.

A mulher que escreveu na obra disse que comprou o livro achando que ele abordaria apenas a questão racial e que depois descobriu que a obra também falava sobre religiões, assunto que, segundo ela, a escola havia informado que não seria tratado neste ano.

Como no livro o cristianismo não era abordado, ela decidiu escrever as passagens bíblicas à mão, para que, desta forma, os pais dos alunos pudessem ler, se quisessem, diferentes versões para seus filhos. Sobre as partes onde ela escreveu “informação falsa”, ela informou que faz a indicação faz referência à sua realidade de mulher cristã.

Após o caso repercutir na unidade escolar, a mulher contou que foi hostilizada por um grupo de pais de alunos e chamada de “vândala” e “intolerante”.

Indicações bíblicas

Logo na primeira página do livro, o autor fala sobre Obatalá e o caracteriza como o “orixá que criou o mundo”. Ao vandalizar o livro, a responsável pelo aluno caracterizou a informação como falsa e citou o livro bíblico Gênesis.

“Quem criou o mundo foi Deus, o Criador. Está escrito na bíblia. Confiem na bíblia”, escreveu.

O livro também traz ilustrações didáticas para caracterizar os orixás. Nelas, foram escritos textos como “essa imagem representa um ídolo”.

“Orixás não são deuses. Eles são ídolos africanos cuja sua personalização é assumida por entidades. Considerados pelo cristianismo como “anjos caídos”, escreveu em outra página.

A obra ainda traz um glossário para ajudar as crianças a entenderem algumas palavras que são citadas ao longo do texto, como Obatalá, orixás e Alá. Para explicar o que é o continente África, o autor destacou que “é o lugar onde a raça humana começou, e por isso, é conhecida como o berço da humanidade”.

Ao lado do substantivo, a responsável desenhou um “x” e escreveu: “essa informação é falsa”. Segundo ela, as informações verídicas sobre a criação dos seres humanas também estão no livro bíblico Gênesis.

As declarações se estenderam ao autor do livro, Emicida. Como o rapper já contou em várias entrevistas, o seu nome artístico é um acrônimo: a junção das palavras homicida com MC. O nome foi criado depois que ele, que se chama Leandro, passou a vencer diversas batalhas de rap – ou seja, “matar” os adversários com suas rimas poderosas.

A história por trás do acrônimo foi destacada pela mulher, que pediu que os outros responsáveis “conheçam também a biografia do autor”, já que o nome usado por ele tem relação com a palavra “homicida”.

“Eu não recomendo livros religiosos em escolas, já que a bíblia foi retirada de lá”, também escreveu.

Com informações do g1 BA