João Tupã Centurião, aluno de uma escola indígena em São Miguel do Iguaçu, no Paraná (Foto: Christian Rizzi / UOL)

Assim que o sol começa a se pôr, João Tupã Centurião sai caminhando de casa em direção a um campinho de futebol. Lá ele espera o ônibus para ir à escola, a pouco mais de 3 km de sua casa.

Centurião não é um aluno qualquer. Ele tem 102 anos e desde 2021 começou a frequentar o EJA (Educação de Jovens e Adultos) da escola estadual indígena Teko Ñemoingo.

Centurião vive na aldeia Tekoha Ocoy, um território avá-guarani que fica a 60 quilômetros de Foz do Iguaçu, no município de São Miguel do Iguaçu, oeste do Paraná. Reconhecido e respeitado como líder, ele é o indígena mais longevo da comunidade.

João, que nunca foi à escola, até pouco tempo atrás só sabia mesmo assinar o nome. As tarefas de pai de família e conselheiro da comunidade tomaram o tempo durante o percurso da vida.

Filho de cacique, seguiu os mesmos passos do pai. No Ocoy, ocupou o posto de líder entre 1984-1988. Participou da luta para garantir muitos dos direitos que a comunidade tem hoje. Com ar de tranquilidade e de poucas palavras, Centurião decidiu estudar no meio da pandemia, depois de ter cumprido muitas das responsabilidades da vida.

Criou sete filhos e ficou viúvo duas vezes. Hoje mora sozinho e ocupa o tempo entre o plantio — em casa cultiva mandioca, milho, amendoim, melancia — e a escola de que tanto gosta. “Estou indo lá para aprender alguma coisa. Nunca será tarde. Vou aproveitar”, conta.

Na sala de aula

Centurião ocupa a primeira carteira da fila. Está na fase inicial da alfabetização, no primeiro ano. Quer aprender, conhecer, desbravar as letras que ainda não fazem parte do seu mundo. A exemplo dos outros alunos, quando chega, recebe o caderno brochura que fica guardado na escola. Com o lápis, copia atentamente a lição de português, escrita com giz no quadro e repete as sílabas e palavras, a pedido da professora.

Aluno aplicado, quando não pega o ônibus chega à escola pedalando. “Ele é um orgulho de aluno porque não falta aula nem se estiver chovendo ou fazendo frio”, conta a professora Rosane Takua Nemandeavy Martines Rocha, 28.

Como tem dificuldade de visão e audição, em razão da idade avançada, a professora faz um acompanhamento diferenciado e personalizado. João é considerado por ela um dos mais inteligentes. Por vezes, fica ao lado dele para instruir e fazer as correções no caderno. O idioma guarani é usado nas aulas para instruir os estudantes indígenas a aprender o português.

Centurião conta que resolveu estudar para ocupar a cabeça e não ficar sozinho em casa. Devagarinho, ele já começa a ler alguma coisa, juntando algumas letras e formando palavras.

Bem-humorado, por vezes faz brincadeiras em guarani que levam toda a sala a cair na gargalhada. Também ajuda a professora quando revela aos colegas a história da comunidade e as tradições de sua etnia. Entre os colegas, a idade varia entre 57 e 81 anos — a maioria são mulheres.

João Tupã Centurião gosta de mexer com números. “O que a gente mais gosta de aprender é matemática para não ser enganado”, sorri. Amigo de Centurião e considerado quase um filho, o líder comunitário Cassemiro Karai Verá Poty, 62, diz que a matemática ajuda Centurião na hora de pagar as contas e compras de mercado.

Na hora do intervalo, Centurião saboreia a merenda da escola. Esta semana jantaram peixe. Também sempre dá uma olhada na tela da televisão que fica ligada no pátio, enquanto espera o tempo passar.

Quando volta para casa, é hora de ligar a lanterna que sempre carrega. Ele usa a iluminação para chegar à porta, durante o percurso de 100 metros que faz a pé na escuridão da aldeia, depois de descer do ônibus.

A Escola Indígena Teko Ñemoingo tem 30 alunos no EJA. No inverno, as aulas são das 18h às 21h; no verão, das 19h45 às 22h45. Na sala de Centurião há 28 alunos matriculados, porém menos da metade tem frequentado as aulas. O motivo é trabalho. A maior parte atua em um abatedouro de frango ou na colheita. Ficam exaustos à noite e não conseguem frequentar as aulas.

Administrada pelo governo do estado, a escola indígena tem 416 alunos matriculados entre pré-escola, ensino médio e EJA. Alguns professores são da própria aldeia.

Líder e conselheiro

Na figura de líder, Centurião ainda cumpre importante papel. Aos domingos, muita gente da comunidade costuma ir à casa dele e fazer rodas ao seu lado para ouvir conselhos. Por vezes, vai ao campo de futebol que fica perto da casa dele, onde já bateu muita bola quando era mais novo.

Os mais de 100 anos não o impedem de viver bem. Ao lado da casa de madeira, ele tem um pequeno terreiro. Cria galinhas, usa bicicleta como meio de transporte e evita comer tudo que vem de fora.

A alimentação, com muito milho, mandioca, trigo e por vezes, frango caipira, ele mesmo gosta de preparar. Frango de mercado, diz, só tem água. É também adepto dos chás.

Com os filhos criados, Centurião não carrega muitas preocupações. A filha mais velha tem 62 anos e mora em outra reserva; a mais nova, 21.

Centurião nasceu em 19 de agosto de 1920, em Foz do Iguaçu, em uma área conhecida como Jacutinga, a 25 km do Ocoy. A partir da década de 1960, a área passou a ser palco de violência agrária, pistolagem e grilagem, que atingia os indígenas. Em meio a esse cenário, os avá-guarani ficavam cada vez mais acuados. Por isso, alguns foram morar no Paraguai.

Após essa fase, veio o alagamento das terras, provocado pela formação do Lago de Itaipu, em 1982. A área conhecida por Jacutinga, em Foz do Iguaçu, onde Centurião nasceu, foi tomada pela água. Ele e a família deixaram o lugar e cruzaram a fronteira para viver no Paraguai, onde encontraram um refúgio.

No mesmo ano, após a criação da aldeia Tekoha Ocoy, Centurião voltou ao Brasil para morar com a família, de onde não saiu mais. A reserva Tekoha Ocoy tem 231 hectares e reúne 950 pessoas.

Com informações do Uol