Como pôr na tela os textos caudalosos e imaginativos de Mário de Andrade, sem abrir mão da meticulosa pesquisa que inspira “Macunaíma”, sua maior obra?
Para reconstituir a viagem que o autor fez ao lado da mecenas Olívia Guedes Penteado, a sobrinha dela e a filha da pintora Tarsila do Amaral, em 1927, pelo rio Amazonas e outros lugares da região, o cineasta e diretor de fotografia, Murilo Salles encontrou uma solução adequada a seu orçamento apertado.
“Peguei o elenco, a equipe e pus todo mundo num estúdio no Rio de Janeiro e reproduzi ao fundo alguns lugares e situações da viagem”, diz o diretor de 74 anos, que tem na bagagem trabalhos ao lado de Bruno Barreto e Eduardo Escorel —por acaso, assinando a fotografia de “Lição de Amor”, adaptação de um romance do modernista.
Em cartaz na Mostra de Cinema de São Paulo, “Mário de Andrade: O Turista Aprendiz” faz uma ampla colagem tanto de registros do modernista quanto da história do cinema, em projeções que retoma marcos como “O Homem com uma Câmera”, de 1929, de Dziga Vertov. Com isso, Salles busca imprimir em tom lírico e irônico essa jornada de encantamento por uma floresta tropical e mítica.
A cenografia recria os ambientes do barco Vaticano, onde Mário e sua trupe estavam abordo, desde sua proa até o salão e os quartos, enquanto as projeções ao fundo embalam as cenas, que lembram esquetes. A certa altura, por exemplo, o modernista, encarnado por Rodrigo Mercadante, desfila de maiô ao lado de várias cópias de si com um título de modelo diferente —da miss jeitinho à miss sem caráter, em alusão ao seu Macunaíma.
Apesar do mar de referências às obras do escritor, que dificultou a feitura do roteiro —”um desafio do cão”—, o filme aposta numa narrativa quase clássica, em tom de chanchada, algo que já era uma forte influência na adaptação de Joaquim Pedro de Andrade para “Macunaíma”, em 1969.
Salles acredita inclusive que o gênero de comédias burlescas, muito popular nos anos 1940, poderiam ter influenciado o próprio autor, que só publicou a versão final de “O Turista Aprendiz” em 1943, pouco após a companhia Atlântida lançar suas primeiras chanchadas.
Num fluxo que remete ao que passa na cabeça do modernista, o longa não se esquiva de pontos polêmicos como a negritude e a homossexualidade de Mário, explorando a perversidade da elite brasileira, seus preconceitos e a destruição dos recursos naturais do país.
“Sou um cineasta político que faz filme sobre o Brasil. A obra de Mário de Andrade sempre me fascinou por essa busca incessante pela nossa identidade, para entender quem somos, o que nos forjou como povo e como nação”, afirma Salles, que já dirigiu 15 longas, entre ficções e documentários, e segue na ativa, mesmo com contratempos.
Em outubro do ano passado, sofreu um grave acidente de carro no Rio de Janeiro, que o deixou alguns dias em coma e poderia ter sido fatal. “Eu tenho um problema, desde os anos 1970, de sofrer uma espécie de apagão. Apaguei enquanto dirigia meu carro e não me lembro de mais nada, só quando acordei alguns dias depois, numa cama de hospital”, diz.
“Nunca tive ego para nada, nem na vida nem na profissão, mas tenho necessidade de realizar meus filmes e outros projetos que procurem entender o país”, afirma. Agora ele se debruça sobre a finalização e montagem de um novo longa, “A Vida de Cada Um”, com o ator e diretor Caco Ciocler na pele de um policial militar que vira miliciano.
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