No ‘Artigo de Domingo’ de hoje, o advogado Felix Valois percorre lembranças e caminhos que moldaram sua própria trajetória de vida – assim como de tantos outros –, a que ele chama de amores antigos.
Como sempre faz em seus textos, Valois propõe reflexões que vão muito além do viés romântico ou saudosista, de quem conhece esta cidade em suas contradições mais profundas.
Revisitar o passado pode apontar caminhos para o futuro das pessoas, da sociedade e da própria cidade de Manaus, que merece, e muito, o amor e o respeito de todos os manauaras. (Por Márcia Costa Rosa)
Amores antigos (Por Felix Valois)
Remexendo nos meus arquivos, deparou-se-me o texto que passo a transcrever, mantendo o título original:
“Não devem ser menosprezados os amores antigos. Os verdadeiros, é certo, que tantos há que só no nome assim podem ser chamados, eis que o tempo se encarregou de passar sobre eles seu inexorável apagador, deletando-os de forma irrecuperável como, na modernidade, acontece e se diz na onipresente informática. Mas, se são verdadeiros mesmo, toda cautela é pouca. Eventualmente afastados, retornarão com queixas amargas para expressar a insatisfação pelo que lhes pareceu descaso.
Na rua Leonardo Malcher, ali próximo ao igarapé de São Raimundo, no trecho que vai até a rua Luís Antony, passei minha infância. Não havia asfalto nem calçamento de qualquer espécie e luz elétrica era impensável. “Pobres, com a graça de deus, mas honrados” – para usar o jargão consagrado pelo professor Carlos Gomes –, ali vivíamos em modorra quase medieval.
O ferro de engomar, a carvão, era instrumento de uso obrigatório nas tardes da minha madrinha Irene, que todos os meus irmãos chamavam de Lelena. Era ela que, em dezembro, nos levava para assistir à pastoral do Luso e em seu colo era que eu buscava refúgio quando o satanás, no meio do espetáculo, saltava das profundas e, em pleno palco, se punha a tentar corromper a mansidão do São José.
Diversões? Quais seriam? Eventualmente uma pelada no campo do Titão que eu insistia em frequentar, mesmo contra a vontade de dona Lucíola e apesar de nunca ter conseguido tratar com intimidade uma bola de futebol. Livre, ainda assim em termos, era o futebol com botões de caroço de tucumã, que rolava em torneios infindáveis, com árbitro, bola de cortiça e tudo o mais que entendíamos de direito, no porão da velha casa de número 122.
De tardinha, era esperar na janela que o professor Valois despontasse na esquina da taberna do seu Brito, para correr e encontrá-lo a meio caminho. E dele receber os afagos de um homem que nunca vi com raiva ou descortês e com quem aprendi o que é ser justo.
A vida me afastou das minhas origens. Anos seguidos, muitos anos, estive longe da velha Leonardo, levado de roldão por isso que é a vida. Voltei outro dia por mera curiosidade. O velho amor, verdadeiro sob todos os aspectos, me lançou queixumes mudos, mas implacáveis.
Já não encontrei o Chalé dos Urubus e o “estádio” do Rapapé é um mero arremedo, talvez pensando em demolição para a Copa. O número 122 me olhou soberbo e como que exclamou: “Esqueceste-me? Então nunca mais vais me ver como eu era. Mudei, é certo, mas esperava de ti mais compreensão”.
Perdoem-me todos os meus amores, que se esvaíram, da Manaus da minha infância. Não me punam com seu desprezo e sua eterna ausência”.
Pelo registro do computador, isso que está acima foi escrito há quase uma década. Na essência, nada mudou. Talvez, somente, a dimensão da saudade que insiste em não se afastar e, com isso, acumula mais forças. Dir-me-ão que enveredo por sendas de um romantismo piegas e superado. Será que é isso mesmo ou apenas a lassidão da velhice? Acho que, no final das contas, as duas coisas se misturam.
Vem-me à lembrança a crueldade do hipopótamo machadiano que, a um Braz Cubas delirante, lançou a sentença: “Vives; não quero outro flagelo”. Mesmo tendo em conta o pessimismo do Bruxo do Cosme Velho, a afirmativa chega quase ao terrorismo existencial. Se temos a própria vida como flagelo, o que dizer das circunstâncias em que ela se desenvolve? Entre elas essa coisa indefinível (ah, as perguntas da Heleninha!) que conhecemos como saudade.
Fazer o quê? Talvez, se a genialidade de Einstein tivesse ensinado como recuar no tempo, eu me arriscasse a empreender a viagem. Não sei se valeria a pena porque, como advertiu o filósofo grego, ninguém consegue mergulhar duas vezes no mesmo rio. É a tal dialética jogando a pá de cal sobre as especulações românticas. Fiquemos, portanto, com ela que foi, suponho, quem conduziu a pena de Vinicius de Moraes, quando, falando de fidelidade, jurou atenção prioritária ao seu amor, mas proclamou, quase num conformismo dilacerador: “Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”.
Manaus, quem ama, respeita! Felix Valois – Vereador 13339