Lesões e deformidades encontradas em tartarugas, toninhas e filhotes de peixes na região da foz do rio Doce, no Espírito Santo, podem estar relacionados com a tragédia de Mariana, de 2015. É o que apontam pesquisadores, que ligam o acúmulo de metais em organismos do topo da cadeia alimentar ao rompimento da barragem de Fundão, que despejou 43,8 milhões de metros cúbicos de rejeitos no meio ambiente.
A conclusão é de um relatório do PMBA (Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática). Ele faz parte do acordo de cooperação técnico-científica entre a Fest (Fundação Espírito Santense de Tecnologia), ligada à universidade estadual, e a Fundação Renova, entidade responsável pela reparação dos danos da tragédia.
De acordo com o coordenador do estudo, Fabian Sá, o resultado já era esperado pelos pesquisadores que têm acompanhado os indicadores da região desde 2018. Eles vinham identificando a concentração de alguns metais em animais da base da cadeia alimentar, como em plânctons, organismos bentônicos —que vivem no fundo do mar— e em peixes.
“Agora, tem esse aumento na concentração dos organismos de topo da cadeia alimentar. É uma coisa bastante conhecida, chamada de biomagnificação, quando os organismos de base da cadeia acumulam esses elementos e há uma transferência conforme um vai se alimentando do outro”, diz o pesquisador.
O impacto desses metais no organismo chega a ser visível em alguns casos, como em larvas (filhotes) de peixes com deformidades na região da cabeça ou que apresentam destruição do seu sistema gastrointestinal. Em tartarugas, aparecem lesões oculares que não eram vistas antes da tragédia de Mariana, diz Sá, que também é professor da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santos).
Procurada, a Fundação Renova afirmou que o acordo de cooperação técnica firmado com a Fest chega a R$ 696,5 milhões em contratos.
Os resultados do relatório funcionam como subsídios para o planejamento das ações de reparação da biodiversidade, mas “devem ser interpretados com cautela e integrados a outros estudos para preencher lacunas de conhecimento”, disse a entidade.
Ela também afirmou que até julho de 2024 foram destinados R$ 37,47 bilhões às ações de reparação e compensação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão.
A discussão em torno do acordo para indenização aos afetados pela tragédia segue sendo negociada pelas mineradoras Vale e BHP —controladoras da Samarco, dona da barragem—, governos federal e estaduais e outros órgãos públicos. A expectativa dos envolvidos é para uma definição ainda neste ano.
A correlação do acúmulo de metal em animais com o rompimento da barragem de Fundão foi feita a partir da comparação dos dados atuais com os coletados antes da tragédia de 2015.
Quando não há essas informações, é feita análise da variação dentro do próprio monitoramento ou das chamadas áreas controles, em que há a comparação de populações em territórios com características semelhantes, como o litoral baiano.
O caso das tartarugas-marinhas é tratado como mais preocupante pelos pesquisadores, que apontam que elas historicamente são fragilizadas na região, tendo passado por gargalos populacionais antigos e recentes, perda da diversidade genética e comprometimento da saúde.
“Foram encontradas concentrações de arsênio, cádmio, cromo, mercúrio, chumbo e zinco em tartarugas-cabeçudas que desovam na praia e de arsênio, cromo e cobre nas tartarugas-verdes que se alimentam na área impactada”, diz um trecho do estudo.
“O aumento desses contaminantes no plasma sanguíneo pode ter efeitos na saúde e capacidade reprodutiva da população. Foi observado, ainda, que há transferência materna dos contaminantes da fêmea para os ovos, uma vez que eles possuíam concentrações detectáveis de todos os metais analisados e também há forte correlação entre número de ovos não eclodidos e a concentração de metais encontrada neles”, afirma o relatório.
No caso desses animais, a correlação com o rompimento da barragem ganha ainda mais força porque o Instituto Tamar coleta dados na região há mais de 20 anos, afirma Fabian Sá.
O PMAB, porém, já identifica uma melhora no nível de qualidade dos ambientes marítimos na porção capixaba do rio Doce, apesar de o nível ainda não estar nas mesmas condições do período pré-rompimento da barragem.
“A gente não sabe se essa melhora já está associada a ações que foram implementadas, ou se é um efeito do tempo do desastre, em que o sistema vai absorvendo esse impacto com o tempo, diluindo ele. A gente vê uma tendência de melhora na qualidade da água, do sedimento e base da cadeia, mas uma piora no topo”, afirma o coordenador do estudo.
Ele também diz que as condições se deterioram no período chuvoso, quando os rejeitos são arrastados pelos rios até chegar ao oceano Atlântico.
Uma das questões que divide os pesquisadores hoje é o que fazer com o material ligado ao desastre que está retido na Usina Hidrelétrica de Candonga, localizada no limite entre os municípios de Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado, em Minas Gerais.
“Há duas opções: uma é dragar os sedimentos de uma vez, mas isso deve causar um segundo momento de impacto, com eles descendo rio abaixo. Você vai intensificar o que já ocorre hoje, mas talvez por um período mais curto”, diz Sá.
“A outra alternativa é tentar diminuir a influência desse material nos períodos chuvosos e deixar ele lá sem mexer. Então, qual é a melhor ação? Retirar e ter um impacto mais a curto prazo ou mantê-lo sem saber quanto tempo isso pode ficar influenciando ainda?”, questiona o pesquisador.