Aline Pachamama tem se esforçado para ler o material que chega até ela por e-mail ou mensagem de texto. A escritora e pesquisadora com raízes na etnia Puri tem atravessado um período intenso de cirurgias oculares, devido, claro, a alguns problemas de visão. E embora sua condição atual requeira cuidados atenciosos, a rotina de editora de livros não foi drasticamente afetada: a vontade de se manter atuante e produzir literatura fala mais alto.
Historiadora de formação, Aline Pachamama é doutora em História Cultural pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e sempre esteve envolvida em iniciativas para preservação e divulgação da cultura indígena.
Ao longo dos anos pôde acompanhar de perto, na universidade e fora dela, a produção de autoras indígenas, mas percebia que muitas delas não conseguiam publicar suas obras em grandes grupos editoriais.
Para suprir esta demanda, Aline resolveu elaborar um projeto de editora para publicar novas vozes, e daí surgiu a Pachamama, no ano de 2016.
Em entrevista à Mongabay, Aline ressaltou a necessidade de contar a história de seus ancestrais: “Narrar a história como ciência do meu povo, trazer a biografia do povo Puri”.
Pachamama, que em língua quíchua significa “Mãe Terra”, é um projeto que tem como foco a publicação de obras bilíngues com ênfase em literatura indígena. O nome da editora é uma homenagem à mãe, dona Jecy, uma artesã que trabalha com tecidos.
Oralidade e memória
A editora é composta exclusivamente por mulheres – e se destacou no cenário literário brasileiro ao propor um modelo editorial que integra oralidade e memória dos povos originários por meio do texto e dos processos de escuta, fugindo das praxes do mercado editorial tradicional.
Para a historiadora Márcia Mura, autora da casa, a editora foi uma escolha coerente e natural na hora de publicar seu livro, “Tecendo Memórias”. “O livro é um recorte da minha tese de doutorado, que traz a questão da afirmação indígena e do fortalecimento cultural”, diz Márcia.
Coordenadora do coletivo Mura, em Porto Velho, que realiza um trabalho de recuperação de memória e reconhecimento dos antepassados, Márcia acredita que o trabalho da editora é pioneiro por mobilizar uma grande rede de autoras indígenas de todo o país.
“Nossa caminhada passa pela recuperação da história, da memória e do reconhecimento. Nós somos historiadoras, então temos muitas lutas em comum”, reflete Márcia Mura sobre a colega editora.
Aline concilia a produção de livros com o ativismo pela palavra. Em suas redes sociais, mantém um diálogo aberto com o público e vê com otimismo a circulação de ideias sobre os temas que lhe são caros, como a ecologia, a luta antirracista e a história dos povos originários.
Para a professora Shirlei Rodrigues, conselheira da editora, a Pachamama se diferencia de outras pequenas casas editoriais por carregar um projeto que ultrapassa a barreira editorial e assume uma luta política.
Por “honrar a ancestralidade e o convite que faz a todas as pessoas para uma caminhada de valorização dos povos originários e das causas ambientais”, ela diz.
Com uma linha editorial eclética, a Pachamama publica de obras de não-ficção, como ensaios, a histórias e poesia. “Nós publicamos livros que não apenas documentam as tradições indígenas, mas que também valorizem as línguas originárias”, diz Aline. Um dos projetos mais importantes da editora foi seu primeiro lançamento, em 2016, “Guerreiras: Mulheres Indígenas na Cidade, Mulheres Indígenas da Aldeia”.
O livro surgiu da inquietação de Aline ao questionar onde estavam os indígenas na cidade do Rio de Janeiro. O livro, fruto de uma pesquisa que envolveu entrevistas com 13 indígenas de diferentes etnias, aborda as realidades de mulheres que viviam tanto em áreas urbanas quanto em aldeias.
Entre as etnias representadas no livro de estreia, estão Anambé, Guarani, Kayapó, Puri e Xavante. O trabalho, que foi concebido por meio de um edital, mostra como as experiências dessas mulheres em suas lutas e conquistas cotidianas têm a ver com a questão de território.
Cada livro é um projeto, uma floresta
“Cada livro é um projeto, uma floresta, uma extensão. O desafio, no entanto, sempre foi se manter fora do mercado editorial tradicional, que vê o livro como um produto, e não como um espaço de memória. Tivemos muita dificuldade por não adequar o livro a esse mercado editorial que é um espaço, primeiramente, capitalista”, justifica Aline.
Para Shirlei, que é professora, a curadoria também é uma questão primordial. “A editora Pachamama requer uma mentoria bem criteriosa, pois apoia autoria de pessoas indígenas e negras que são comprometidas com esses movimentos. É muito importante que promova a qualidade dos livros e do conteúdo. A Pachamama propõe a publicação de livros multilíngues que nos leva a refletir e se sensibilizar sobre as diversas etnias que estão no Brasil, no mundo”.
A iniciativa criou raízes e Aline fundou, em 2021, o Instituto Pachamama, que tem sede em Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro, onde Aline mora. O instituto foi criado também para desenvolver o projeto Inhã Uchô, que busca reparar historicamente o povo Puri da Mantiqueira. Além de ser um espaço de resgate cultural, o local, que abriga também a editora, propõe um diálogo entre a ciência e as práticas ancestrais dos povos indígenas.
Em 2023, Aline Pachamama recebeu apoio da Faperj e do Instituto Serrapilheira por meio de uma chamada conjunta voltada para apoiar cientistas indígenas e negros. O projeto intitulado “Ecologia é Ciência, e nós, indígenas, a praticamos” foi contemplado na modalidade de apoio discricionário. A iniciativa tem como objetivo desenvolver projetos inovadores em ecologia e ciência, preservando memórias e práticas ancestrais do povo Puri.
Agora em outubro, Aline relançará o livro “TAYNÔH” no Museu A Casa, em São Paulo. Considerado o livro mais ambicioso da editora Pachamama por ter sido traduzido em 13 línguas, entre elas Guarani, Xavante e Puri, além da língua crioula falada em Guiné-Bissau, na África, a edição contempla traduções para espanhol, francês, inglês, italiano e português.
Além de trazer discussões sobre o meio ambiente, a autora destaca que o propósito do livro é promover a educação antirracista e a reparação linguística, estimulando o público, especialmente professores, a olhar para as línguas indígenas existentes no Brasil e na África.
“Queremos reconquistar territórios através da palavra”, diz Aline Pachamama, que reconhece que a produção literária no Brasil é cara e desafiadora, mas vê nos seus livros uma forma de manter viva a história e a ciência de seu povo. “O livro, para mim, é vivo.”
Com informações da coluna Notícias da Floresta / Uol (Reportagem de Matheus Lopes Quirino)