“A ideia é dar um primeiro choque de combate intenso aos ilícitos para depois manter a proteção, claro, sempre com a consulta aos indígenas”. Assim resumiu a diretora de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Beatriz Matos, uma das coordenadoras Plano de Proteção ao Vale do Javari. As propostas são direcionadas para região onde foram assassinados o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, em junho de 2022.
O plano foi apresentado à Justiça Federal do Amazonas pelo governo Lula (PT) um ano e meio depois do duplo homicídio, em dezembro de 2023, e noticiado pelo Terra nesta segunda, 22. A estratégia de combate ao garimpo, pesca e caça ilegal, tráfico de drogas e desmatamento na segunda maior TI do país estima custo de ao menos R$ 13,9 milhões e apoio de 55 servidores das Forças Armadas, Funai, ICMBio e da Força Nacional de Segurança.
“É [uma proposta] bem realista e modesta. Considero esse plano barato, exequível e um piloto para podermos fazer esse ataque, ter a presença do Estado e manter as bases de controle”, afirmou em entrevista à coluna na última sexta, 19.
Matos exerce a função de diretora do MPI desde fevereiro de 2023. Viúva do indigenista Bruno Pereira, ela diz que o enfrentamento é complexo em razão do envolvimento do crime organizado de facções com crimes ambientais.
A diretora estuda a questão indígena há 23 anos no Brasil. Com formação em antropologia social e trabalhos acadêmicos relacionados aos povos indígenas, ela diz que a situação já era grave e piorou durante os quatro anos de governo Jair Bolsonaro (PL) e que há dificuldade em priorizar ações coordenadas.
“A gente precisa considerar todo esse esforço da desintrusão na TI Yanomami (RR), Apyterewa (PA), Alto Rio Guamá (PA), Trincheira Bacajá (PA). Temos que lembrar que são as mesmas forças, as mesmas pessoas e equipamentos que estão fazendo isso tudo. É difícil a priorização”, disse.
Leia a seguir os principais temas abordados na entrevista com a diretora Beatriz Matos:
Plano de Proteção
A gente [MPI] faz uma viagem em fevereiro de 2023 para Terra Indígena do Vale do Javari, nos reunimos com a Univaja, Funai, comandante da Polícia Rodoviária Federal local, lideranças indígenas, o presidente do Ibama, presidência da Funai, secretarias executivas de vários ministérios e a própria ministra Sônia Guajajara. Ali a própria ministra e a secretária se comprometeram com essa retomada do Estado, sobretudo na questão da proteção territorial.
O presidente Lula assinou o decreto em abril, que instaurou o comitê de desintrusão de Terras Indígenas. A gente criou um Grupo Técnico do Vale do Javari para responder essa demanda, de como seria um plano de proteção.
O plano de 2021/2026 foi elaborado pela Univaja em concordância com a Funai. E esse plano foi objeto da ação civil pública, que determinou [em novembro de 2023] que o governo o cumprisse. O que a gente fez pelo GT foi trazer esse plano para o âmbito da discussão interministerial e atualizá-lo.
O que culminou no assassinato do Bruno e do Dom era a situação de abandono na fronteira, com a presença de grupos armados envolvidos com tráfico de drogas. Uma presença sem precedentes, que nos quatro anos anteriores pioraram muito, por conta da negligência do governo anterior.
Depois dos assassinatos e depois de começar o governo atual, a gente tem um contexto muito diferente. Tanto institucional, dos órgãos que podem se envolver de fato numa proteção territorial, quanto da situação local. Mudou tudo ali com aquele duplo assassinato.
O plano que a gente quer executar é esse. Que envolve mais órgãos, mais atores [do que o anterior]. Ontem [quinta, dia 18], por exemplo, estive em uma reunião no Ministério da Justiça para ver que tipo de ações da pasta podem estar contribuindo com essa proteção territorial, de investigação, de combate às drogas, etc. O plano de proteção é uma forma de organizar e articular as ações que acontecem em diferentes áreas do governo.
Morte de Bruno e Dom
O plano anterior foi executado só da parte da Univaja, na parte de monitoramento e vigilância. Estruturam quase que profissionalmente, fizeram capacitação dos indígenas, organizaram um fluxo de informações do monitoramento que faziam e passavam ao Ministério Público Federal, para Funai, Polícia Federal, sem apoio nenhum do governo nem de nada.
E justamente culminou nos assassinatos, que têm a ver com o trabalho que o Bruno e o Dom estavam fazendo de apoio à Univaja. Poderia ter sido um assassinato de lideranças indígenas ali. A negligência, a falta de apoio que eles tinham para fazer isso culminou no assassinato.
O plano resolve a questão?
Não. Ele é uma resposta inicial. A gente tem essa questão muito complexa ali: o garimpo que tem se intensificado, mesmo ações que estão acontecendo mais intensamente em outras terras indígenas fazem com que os garimpeiros migrem. Mas não é só isso, a gente tá lidando com um passivo de muitos anos de descaso de proporções enormes. Por exemplo, a questão do tráfico de drogas em território indígena. Trabalho há pelo menos 23 anos com povos indígenas e a atual situação é sem precedentes. Como a gente teve a pandemia de Covid, e um apagão de dados, pesquisa e diagnóstico do governo anterior, a gente chega numa situação de abandono, avassaladora.
O nível de envolvimento do crime organizado com os crimes ambientais eram situações relativamente separadas, agora está completamente vinculado. A “faccionalização” [entrada para facções criminosas] dos jovens que por qualquer bobagem são presos em presídios do Norte, de pequenas cidades do interior e voltam [à sociedade] como membro dessas facções.
A gente tem essa complexidade. Esse plano é como um projeto inicial para atacar os principais problemas. Ele é pensado para um ano, e nada impede que seja renovado. A ideia é dar um primeiro choque de combate intenso aos ilícitos para depois manter a proteção, claro, sempre com a consulta aos indígenas.
Desafios para execução
A execução já está consensuada entre as áreas envolvidas, a questão são os recursos. Os diversos órgãos já fizeram a separação orçamentária. Os órgãos disseram, dentro de suas possibilidades para o ano, o que poderia ser oferecido. É bem realista e modesto para uma área dessa dimensão. São ações pontuais, cirúrgicas.
A gente precisa considerar todo esse esforço da desintrusão na TI Yanomami (RR), Apyterewa, Alto Rio Guamá (PA), Trincheira Bacajá (PA). Temos que lembrar que são as mesmas forças, as mesmas pessoas e equipamentos que estão fazendo isso tudo. É difícil a priorização.
Considero esse plano barato, exequível e um piloto para podermos fazer esse ataque, ter a presença do Estado e manter as bases de controle. Manter a Funai bem equipada e fortalecer o trabalho que o Univaja faz para o Estado de monitoramento, porque eles que conhecem a terra.
É uma prioridade para a ministra e outros setores do governo, como já foi dito e anunciado muitas vezes. O Vale do Javari guarda um tesouro ambiental e cultural de valor incalculável, além da maior população de povos indígenas isolados do mundo. É uma área de fronteira, de floresta relativamente bem preservada, ainda não está assolada [devastada] por garimpo, mas nas fronteiras tem uma inserção do tráfico muito preocupante.
Por que há dificuldade em ações governamentais neste tema?
A gente tem enfrentado desafios gigantescos. São complexidades muito grandes. Não existe má vontade ou negligência. Esse ano temos mais condições de realizar o trabalho. O presidente assinalou que vamos ter mais um crédito extraordinário, que é um alívio. Se a gente não tivesse, de novo a questão Yanomami iria sugar toda a energia, porque é complexo em um nível muito grande.
A Terra Indígena do Vale do Javari não está assolada por essa degradação do garimpo. Tem garimpeiros entrando, está muito perto de territórios de povos isolados. É preocupante e perigoso, mas não é o nível de degradação ambiental e humana que encontramos na TI Yanomami. Mas se não cuidarmos pode vir a ser. E temos outras Terras Indígenas que temos situação de garimpo muito preocupante que temos que atacar também.
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