
Há 50 anos, no meio da floresta Amazônica, uma pajé e um “raizeiro” se encontraram. Além de compartilharem um mesmo povo, os Tembé, os indígenas tinham em comum o amor pela mata intocada, fonte indispensável para o trabalho de Pedro de colher raízes, cascas e ervas; e para os remédios de cura feitos por Francisca.
Décadas depois, enquanto os filhos se multiplicaram formando uma família numerosa, o casal viu a matéria-prima de toda uma vida rarear junto com a mata nativa. Hoje, preservam o pouco que restou na Terra Indígena Alto Rio Guamá, mesmo que para isso a própria família fique sob o risco de invasores.
Pedro e Francisca Soares são indígenas que preservam a floresta e nunca foram remunerados por isso. Até agora.
Lançado pelo governo federal durante a Cúpula de Líderes que antecedeu a Conferência do Clima das Nações Unidas (COP-30), em Belém, o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, na sigla em inglês) promete alterar essa realidade. O mecanismo foi concebido com o propósito de remunerar países que mantenham a floresta em pé e destinará, no mínimo, 20% dos recursos para organizações de povos indígenas e comunidades tradicionais.
“O tempo que indenizaram os posseiros para tirarem daqui era para ter indenizado nós”, afirma Pedro, que diz que com o passar dos anos os indígenas foram vendo a floresta ser destruída por invasores e atuaram para protegê-la.
“Da mata, a gente precisa das ervas, das cascas para fazer remédio”, conta a pajé Francisca, reclamando da escassez.
A promessa de reparação tardia proposta pelo TFFF é vista ao mesmo tempo com alegria e desconfiança pelos indígenas. Entre os temores, o receio de que o dinheiro acabe não chegando de fato para as comunidades, que com a mudança do clima têm ficado cada vez mais vulneráveis.
“Temos parentes que precisam proteger o território, que têm seus territórios invadidos, e que têm 30 anos de contato, que não têm uma associação, uma federação. Como ele vai acessar? Se tivermos um fundo que olhe e reconheça a forma como temos nos organizado para receber esse recurso, aí acredito que funcione”, pondera o cacique da Aldeia Ituaçu, na Terra Indígena Alto Rio Guamá.

A cinco horas de Belém, onde ocorre a COP-30, a Terra Indígena Alto Rio Guamá, casa dos povos Tembé, Timbira e Ka’apor, passou por uma megaoperação em 2023 para retirada de invasores. Homologado na década de 1990, o território tem 280 mil hectares de extensão. O local é marcado por diversos conflitos entre indígenas e fazendeiros da região. Cacique da Aldeia Sede, Naldo Tembé foi torturado em um conflito na década de 1990. Desde então, já passou por vários outros.
“Nunca fomos pagos por proteger a floresta, muitas das vezes fomos até mortos”, critica.
Apesar da desintrusão recente, o território ainda é permeado por questões de segurança, sendo pressionado mais recentemente pelo narcotráfico. Diante da realidade, os caciques do território buscam recursos para a compra de drones para monitoramento da terra. Mais uma necessidade que poderia ser atendida com a vinda de recursos para os povos da floresta.
Drones para proteger a floresta
As lideranças elaboraram um projeto para entregar a autoridades durante a COP-30 que prevê iniciar o monitoramento aéreo dos 212 km de fronteira da Terra Indígena Alto Rio Guamá por meio de drones com inteligência artificial.
A iniciativa prevê a compra do equipamento, a capacitação técnica dos indígenas por meio do financiamento a partir dos recursos gerados por créditos de carbono e fundos climáticos. A meta é reduzir as invasões ilegais em 50% e os focos de incêndio em 70%.
“O drone tem a facilidade de ter essa visão ampla, mostrar como está, quem está ali na frente. Temos uma área invadida por traficantes, em uma parte onde a polícia não conseguiu chegar. Eles têm drone de alta resolução, armas de forte calibre, como vamos entrar numa área dessa?”, diz o Cacique Naldo Tembé. “Um drone vai ajudar na nossa fiscalização. O que falta para a gente é recurso.”
Naldo desconfia que o dinheiro chegue de fato ao território, sobretudo por conta de sua experiência com a captação de recursos via créditos de carbono. “Desde 2004 que pelejamos pelo sequestro de carbono e nunca conseguimos”, critica.
Ronaldo Amanayé, da Federação dos Povos Indígenas do Pará, que representa cerca de 70 povos, afirma que muitas vezes os indígenas são usados como isca para atrair financiamentos que não chegam na ponta.
“Uma das nossas propostas para COP-30 é que possamos ter acesso ao financiamento direto, sem atravessadores, que esses recursos para esse fundos cheguem de fato para quem protege, que somos nós, povos indígenas”, diz.

Modelo para garantir financiamento
Desenhado para remunerar os países pela proteção das florestas, o TFFF prevê o pagamento de US$ 4 por hectare preservado. Para que o fundo comece a operar, o governo brasileiro indica a necessidade de US$ 25 bilhões. Durante a Cúpula de Líderes que antecedeu a COP-30, o Brasil alcançou investimentos da ordem de US$ 5,5 bilhões. Os aportes foram feitos pelo próprio País ( US$ 1 bi), pela Indonésia (US$ 1 bi), pela Noruega ( US$ 3 bi), e pela França (US$ 577 mi).
O diretor de Políticas Públicas para Florestas e Mudanças Climáticas da Wildlife Conservation Society (WCS), Carlos Rittl, que ajudou a desenhar o TFFF, explica que o mecanismo tem travas que garantem o acesso dos povos indígenas aos recursos que forem gerados.
Um dos formatos prevê o repasse dos recursos do TFFF para fundos indígenas já existentes, com o Podáali, gerido pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “Ele é um fundo que visa permitir o acesso direto de populações indígenas a recursos internacionais. Esse poderia ser um caminho de acesso a grupos indígenas do Brasil aos recursos do TFFF”, explica.
Outro arranjo possível em países que não tenham esses fundos, seria promover a transparência dos repasses. “É quase como se eles tivessem que ter uma conta bancária separada para que a contabilidade seja aberta e demonstre que os recursos estão sendo direcionados para benefício desses grupos”, exemplifica Rittl.
O TFFF foi desenhado com a participação da Aliança Global de Comunidades Territoriais (GATC, na sigla em inglês). A entidade conduziu consultas a esses povos para contribuir com a criação do fundo. Coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e co-Presidente da GATC, Kleber Karipuna diz que a ideia é que o porcentual destinados aos povos tradicionais seja ainda maior.
“Fica aberto o diálogo de povos indígenas e comunidades locais nos seus países para que essa porcentagem mínima possa possa ser ampliada. Aqui no Brasil mesmo estamos já em diálogo com o governo, com o secretariado do TFFF para que essa porcentagem possa ser maior”, diz.
Ele explica que outra conquista foi que o financiamento de políticas públicas governamentais para os povos indígenas não seja debitado do porcentual reservado a esse grupo pelo TFFF. “A gente fez uma discussão global do mecanismo. Agora a ideia é aterrissar em cada país para ver como que o arranjo se constrói”, pondera.
Em relação aos temores dos povos de que o dinheiro não chegue na ponta, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, afirmou que o formato foi desenhado para evitar que isso ocorra.
“Nós montamos o mecanismo de transferência de recursos mais direto possível: diminuindo burocracia, intermediários e interferência do governo. Os países que não transferirem os 20% em um ano, não receberão seus recursos no ano seguinte”, diz.













