Poças vermelho-escuras de água derretida no pico Pastoruri na Cordilheira Branca, no Peru - Foto: Marco Garro / The New York Times

Dionisia Moreno, uma agricultora indígena de 70 anos, ainda se lembra de quando o rio Shallap, a quase 4.000 metros de altitude na Cordilheira Branca, trazia água cristalina repleta de trutas para sua aldeia, Jancu. “Pessoas e animais podiam beber a água sem sofrer”, diz Moreno. “Agora a água está vermelha. Ninguém pode bebê-la”.

À primeira vista, o rio parece uma vítima da poluição da mineração; o Peru é um grande produtor de cobre, prata e ouro, e as águas próximas a minas abandonadas frequentemente correm em tons de ferrugem. Mas a culpada é a mudança climática. A Cordilheira Branca abriga a maior concentração de geleiras tropicais do mundo, que são particularmente sensíveis ao aumento das temperaturas e uma importante fonte de água doce no Peru.

Por milhares de anos, as geleiras eram reabastecidas com gelo no inverno. Mas elas encolheram mais de 40% desde 1968, revelando rochas que, quando expostas aos elementos, podem desencadear reações químicas que lixiviam metais tóxicos na água e a tornam ácida.

O processo, conhecido como drenagem ácida de rochas, cria uma reação em cascata que polui as fontes de água, explica Raúl Loayza, biólogo da Universidade Cayetano Heredia que estuda a qualidade da água nos Andes. “É um grande problema e está piorando”, afirma.

O degelo acima do lago Shallap, nas nascentes do rio Shallap, expôs mais de 150 hectares da Formação Chicama, rica em pirita, um sulfeto de ferro. À medida que a água do degelo escorre pelas rochas, a pirita se transforma em hidróxido de ferro e ácido sulfúrico, um químico corrosivo que libera metais pesados da rocha na água do degelo, afirma Loayza.

A água pura tem um pH neutro de 7; o lago Shallap agora tem um pH inferior a 4, quase tão ácido quanto o vinagre. Também contém chumbo, manganês, ferro e zinco em níveis que ultrapassam os padrões de qualidade ambiental, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisa de Geleiras e Ecossistemas de Montanha do Peru, ou Inaigem.

As autoridades de saúde declararam o rio Shallap e vários outros riachos acidificados como impróprios para consumo humano. Mas a maioria das aldeias continua a usá-lo para as lavouras, mesmo que não atenda aos padrões de qualidade da água para a agricultura. Os agricultores dizem que usar essa água na irrigação pode fazer com que algumas plantas murchem.

A drenagem ácida de rochas pode degradar ecossistemas e corroer infraestruturas. Juan Celestino, 75, marido de Moreno, disse que quando as trutas desapareceram pela primeira vez do rio Shallap, os moradores pensaram o rio tinha sido contaminado por algum agente poluidor externo. “Não pensamos que era o próprio rio”, diz ele. “O que podemos fazer? Quem pode nos ajudar?”

Joel Salvador no túmulo de seu pai, Vicente Salvador, falecido em 2021 de câncer de estômago, em Ancash, Peru – Foto: Marco Garro / The New York Times

Para identificar pontos críticos, Loayza e outros cientistas usaram imagens de satélite para analisar o espectro da luz solar refletida pelos lagos glaciais. Seu modelo identificou 60 lagos na Cordilheira Branca que são altamente ácidos.

O Inaigem confirmou a drenagem ácida de rochas em cinco dos oito desfiladeiros glaciais que testou até agora. “Há áreas que sabemos que estão muito afetadas e outras onde o processo está apenas começando”, afirma Yeidy Montano, cientista do instituto.

As águas de degelo são mais acidificadas e mais carregadas de metais pesados em áreas de maior altitude dos Andes, onde as geleiras estão derretendo. Aldeias indígenas nessas regiões são as mais vulneráveis e, sendo pequenas, tendem a não ter influência com as autoridades que poderiam ajudar a garantir acesso a alternativas mais limpas.

“Esses lugares na Cordilheira Branca são uma bomba-relógio para as pessoas das terras altas, para seu modo de vida, para os ecossistemas”, ressalta Loayza.

Com a ajuda de uma ONG local, a aldeia de Canrey Chico, que fica no rio Negro, outro que agora tem cor de ferrugem, construiu um sistema de lagoas e canais plantados com juncos nativos para aumentar os níveis de pH e reduzir os metais pesados na água. Mas o governo provincial abandonou um esforço para expandir o programa.

Vicente Salvador, o agricultor que havia promovido o programa, morreu de câncer no estômago em 2021. “Sua principal fonte de água para consumo próprio era o rio”, conta seu filho, Joel. “Não temos acesso a água das nascentes”.

As nascentes há muito são vistas como fontes de água mais limpas do que os rios nos Andes, mas algumas estão secando e outras passaram a conter metais pesados. “Suspeitamos que a água subterrânea também será afetada a longo prazo pela drenagem ácida de rochas”, diz Francisco Medina, diretor de pesquisa do Inaigem.

Sixto León, 59, um agricultor da aldeia Cacapaqui, relata que no ano passado a água da nascente que sua família consumia começou a ter um gosto azedo. “Muitos de nós temos tido dores de estômago”, conta.

No início, o derretimento das geleiras trouxe uma abundância de água. Mas pesquisas mostraram que as bacias hidrográficas na Cordilheira Branca já passaram do seu pico, o que significa que menos água está correndo agora na estação seca.

A qualidade da água que resta está cada vez mais ameaçada pela drenagem ácida de rochas. Nos últimos anos, a lixiviação foi detectada nas rochas acima do lago Palcacocha, as nascentes da bacia hidrográfica que fornece água potável para Huaraz, a capital regional. O lago manteve um pH alcalino de cerca de 7,5, mas os cientistas dizem que provavelmente se tornará ácido à medida que as geleiras acima dele continuarem recuando.

As outras duas bacias hidrográficas que fluem para a cidade já estão se tornando ácidas. A EPS Chavin, a empresa que fornece água para Huaraz, parou de captar água de uma delas em 2006, após a detecção de manganês, um metal que pode ser tóxico. Mas com a escassez hídrica, a empresa planeja construir uma estação de tratamento de US$ 10 milhões para processar águas acidificadas com metais pesados.

“É mais complicado de tratar e mais caro”, afirma María Marchena, gerente da empresa. “Mas a situação é muito crítica e se tornará ainda mais.”

Até 2030, o Inaigem prevê que as geleiras na Cordilheira Branca abaixo de 5.000 metros terão desaparecido. “Isso vai deixar uma grande superfície de minerais exposta”, diz Montano.

*Com informações de Folha de São Paulo