Sob o chapéu — melhor dizer, cocar — de Guajajara, deputada federal pelo PSOL, ficará também a Funai, órgão voltado para a proteção das populações indígenas, que atravessou um de seus piores momentos durante o governo Bolsonaro. Pela primeira vez, a fundação, criada no fim dos anos 1960, que também tem a atribuição de demarcar os territórios das centenas de etnias existentes no país, ficará nas mãos de um dos seus. Ontem (29), o polêmico delegado Marcelo Xavier, que estava à frente do órgão, foi exonerado.
As demarcações, agora, são com ela, conforme promessa de Lula: “Vou apresentar logo de cara 13 delas que consideramos mais urgentes, assim como a retirada dos invasores das terras Ianomâmis e do Vale do Javari”.
Como você recebe a indicação para ser a primeira indígena a assumir um ministério exclusivo para os povos originários?
Esse é o início de uma reparação histórica que o governo brasileiro tem para com os indígenas, pela negação dos direitos e pela invisibilidade. Além disso, é o reconhecimento do protagonismo das mulheres indígenas. Então, é de fato uma emoção muito diferente, um misto de sensações que eu nunca senti antes.
Quais as medidas mais urgentes para se tomar na questão indígena?
Por ser um ministério que está sendo criado somente agora, vamos precisar colocá-lo de pé, estruturar primeiro a nossa equipe. Até sexta-feira (hoje), vamos fechar isso. Mas de imediato é muito importante uma articulação com os ministérios afins e também com a Presidência para colocar em curso a ação de retirada dos invasores de territórios indígenas como o dos Ianomâmis, de proteção no Vale do Javari. Para isso, já estamos pensando para os primeiros cem dias em uma visita do próprio presidente Lula in loco para dar início a essas ações concretas. Temos também a missão de resgatar o orçamento para a causa indígena. Há um risco grande de a saúde indígena entrar em colapso. Vamos fortalecer a Sesai (secretaria voltada para a saúde dos indígenas), que vai continuar sob o guarda-chuva do Ministério da Saúde.
Como será feita a integração da Funai à pasta?
A Funai sai da alçada do Ministério da Justiça e passa a responder diretamente ao Ministério dos Povos Indígenas. Essa discussão foi feita com a equipe de transição e o grupo técnico formado por indígenas para que o ministério comece forte. Portanto, o órgão será uma autarquia dentro da pasta, com seu orçamento próprio (R$ 800 milhões) e com a promessa de que ele seja complementado. O Ministério vai ter também um aditivo em seu orçamento, ainda a se discutir com o Rui Costa (ministro da Casa Civil).
Como foi a conversa que você teve com Lula? Você chegou a dizer que tinha algumas condições para aceitar o ministério…
Eu encontrei com Lula por volta das 17h de quarta-feira. Ele mandou me chamar e disse: “Soninha, eu te indico e te convido para ser a ministra dos povos indígenas. E pode contar comigo, você tem aqui um grande parceiro”. Eu coloquei para ele a necessidade de se rever a questão orçamentária, olhar com carinho e prontidão que se deve para a questão fundiária e de demarcação das terras indígenas. Precisamos desse gesto para com os povos indígenas e assim começar a suprir todo o desmonte e negligência que foram os quatro anos do governo Bolsonaro.
Como fica a questão da demarcação das terras?
Ela não passará mais pelo Ministério da Justiça. Teremos com a pasta apenas ações transversais com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para garantir as ações de retirada e pedidos de operações que, claro, terão que passar pela Justiça.
Como você avalia o impacto do governo Bolsonaro nesses últimos quatro anos para a a causa indígena?
Foi uma verdadeira tragédia, uma negligência total. O prejuízo que fica é terrível e, em alguns pontos, irreversível. Vamos ter que reconstruir tudo o que o que eles destruíram. Mas estou confiante. Eu fui perseguida pela Funai e pelo presidente Marcelo Xavier e acabei sendo nomeada ministra. Coincidência ou não, no dia em que ele foi exonerado do cargo. Então é isso, né? O mundo dá voltas.
Como você vê a divergência entre algumas lideranças da Amazônia sobre a escolha do seu nome?
Olha, eu nem creio que sejam divergências, acho que é uma reação natural. Mas vale ressaltar que ninguém estava contestando meu nome. O que algumas lideranças que apoiaram a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR) queriam era deixar o Congresso mais fortalecido, já que ela vai terminar o mandato e eu acabei de ser eleita. Pelo fato de o Congresso ser um local estratégico para nós, palco de muitas retiradas de direitos e também de aprovação de medidas que impactam diretamente nossos territórios. Isso é natural. Eles queriam me ver brigando ali contra ruralistas e parlamentares avessos às nossas pautas. Mas se queremos “aldear a política” para as nossas demandas, acho que estar no Legislativo, no Executivo e no Judiciário também é muito significativo.
A sua relação com Joenia acabou desgastada no processo de escolha de quem ocuparia a pasta?
Não, de jeito nenhum. Hoje, a gente se encontrou, nos cumprimentamos, tiramos fotos juntas ao final do anúncio e falamos da importância de conversar.
A questão dos indígenas isolados e dos povos que habitam a Amazônia terá alguma atenção especial?
A Amazônia é gigante e tem problemas históricos. Eu acho que não tem que ter um olhar mais para um do que para o outro. A gente tem que olhar a realidade regional e buscar soluções para cada uma delas. A questão dos isolados é considerada prioritária para o ministério, para a Funai e para o presidente. Lula afirmou para mim que vai visitar o território Ianomâmi e também no Vale do Javari.
Você pretende trazer para o ministério a questão das mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips?
Essa é uma preocupação que não pode ser só nossa. O governo federal, em sua maioria, tem que se envolver nela. Precisamos fazer uma ação transversal para a proteção dos territórios, a segurança dos indígenas e dos indigenistas e servidores da Funai.
Você concorda com a ideia de dar aos servidores da Funai poder de polícia e liberação do porte de armas para atuarem nas áreas de maior risco?
Sim, sou de acordo. Isso já foi discutido no GT (grupo técnico) de transição e há total acordo entre nós. E a questão do brutal assassinato do Bruno tem a ver com isso. Essa tragédia precisa se reverter em medidas de proteção para os povos indígenas que Bruno tanto defendeu.
Com informações de O Globo