Enquanto os holofotes se voltam às negociações da Convenção do Clima da ONU – que tem atraído a atenção da mídia global e de chefes de Estado na última década – a COP da Biodiversidade conseguiu progredir discretamente e encarar, ao menos no papel, o elefante na sala: os subsídios que sustentam um modelo econômico danoso à natureza.
Detalhes definem se uma reforma de incentivos econômicos terá tração. A regulamentação do Marco Global da Biodiversidade, assinado pelos países há dois anos, está em negociação até esta sexta-feira (1º) na COP16, em Cali, na Colômbia.
A meta 18 do documento prevê a reforma ou o redirecionamento de US$ 500 bilhões (R$ 2,8 tri) de subsídios danosos à natureza, que devem ser convertidos em incentivos para atividades positivas à biodiversidade.
Além de prover uma fonte de financiamento que não depende da eterna briga sobre doações do bloco desenvolvido aos países em desenvolvimento – afinal, os subsídios são recursos já existentes dentro de cada governo nacional – a fórmula toca o âmago da crise ambiental: o modelo de desenvolvimento que causa a perda da biodiversidade.
Entre os setores que deverão revisar sua relação com os recursos naturais para trocar a figura de vilão para mocinho estão a agricultura (especialmente por conta da contaminação gerada por pesticidas agrícolas), a pesca industrial e o setor energético – cujos combustíveis fósseis figuram como principal vilão das mudanças climáticas, que, por sua vez, também ameaçam os ecossistemas.
Embora a COP da Biodiversidade olhe para a do Clima como uma irmã maior e mais bem sucedida – por receber mais dinheiro e atenção mundial -, a distância dos holofotes permitiu aos negociadores da biodiversidade mexer no vespeiro dos setores econômicos que lucram com um modelo gerador da crise ambiental, enquanto a COP do Clima levou quase 30 anos para citar o termo ‘combustíveis fósseis’ em uma decisão.
Foi só em 2021 que a COP 26 do Clima, sob presidência do Reino Unido, reconheceu a necessidade de diminuir subsídios “ineficazes” a combustíveis fósseis.
O adjetivo dúbio – ineficaz para quem? – e outros enfraquecimentos da decisão aconteceram nos últimos minutos da conferência, por pressão de grandes produtores de petróleo e carvão, vocalizados por protestos de China e Índia.
Já na COP da Biodiversidade, a negociação sobre subsídios já estava estabelecida pelas Metas de Aichi – que previam, em 2010, a eliminação de subsídios danosos à natureza até 2020. O problema é que, na prática, nada aconteceu.
Agora, na COP16, os países têm o desafio de definir detalhes práticos para que, desta vez, o acordo atual seja cumprido. Com o avanço de terem estabelecido uma meta específica – os US$ 500 bilhões – os diplomatas negociam as estratégias e os indicadores de monitoramento da meta.
É aqui que o vespeiro dos grandes setores econômicos se encontra com o da geopolítica. Por um lado, a União Europeia briga para que o acordo saia com a cara e a forma das políticas em vigor no bloco – como a Reforma da PAC (Política Agrícola Comum) e o Green Deal, que preveem a redução de incentivos a pesticidas agrícolas e promoção de práticas agroecológicas.
Já o Brasil e a Argentina batalham por uma linguagem que não comprometa os apoios dos dois países ao setor agropecuário. A estratégia da dupla é deixar as políticas adotadas nos dois países fora do conceito de subsídios. O principal desvio conceitual deve ser dar sobre o crédito agrícola, que é a base do apoio brasileiro ao setor, através do Plano Safra.
Ainda dentro da meta 18, a COP16 negocia uma estratégia internacional de guinada dos fluxos financeiros.
O último rascunho do tema, proposto na quarta-feira (30), prevê a revisão de prioridades dos portfólios e práticas de agências de cooperação e bancos multilaterais de desenvolvimento, entre outras instituições financeiras internacionais, de modo que alinhem seus fluxos financeiros às metas do Marco da Biodiversidade.
Já na COP do Clima, o tema das finanças climáticas ainda está longe de um consenso sobre o realinhamento dos fluxos financeiros globais.
As instituições financeiras precisam, diante da emergência climática que vivemos, considerar critérios climáticos para a concessão de financiamentos públicos ou privados.
Quem fez esse reconhecimento foi o G20, em uma declaração assinada na última semana. O Brasil espera que o consenso possa ser expandido para mais países na COP29 do Clima – que acontece no próximo mês no Azerbaijão e tem como principal tema o financiamento climático.
É aí que entra o bode na sala: conhecido exemplar da biodiversidade nas negociações da ONU, ele rouba a cena e cria dilemas quase impossíveis de serem resolvidos até o último minuto das COPs.
A exemplo da trava clássica das COPs do Clima, o financiamento, em Cali os países não moveram um milímetro de suas posições sobre a criação de um fundo para doação de recursos que devem sair do bloco desenvolvido para os países em desenvolvimento.
Para que o Marco da Biodiversidade seja cumprido à risca, os países desenvolvidos já deveriam estar desembolsando hoje US$ 20 bilhões de dinheiro público para financiar políticas de conservação da biodiversidade nos países em desenvolvimento. Mas estão longe disso. Na COP16, o aceno dos países ricos foi de uma série de microdoações que somaram US$ 400 milhões – cinquenta vezes menos que o prometido.
Em relação aos US$ 500 bilhões a serem mobilizados através dos incentivos econômicos, as doações anunciadas na COP16 representam apenas 0,08%.
Se seguirem a referência da Convenção do Clima – que passou a última década travada por desconfiança entre os blocos e promessas de financiamento descumpridas -, os negociadores da COP16 correm o risco de recuar diante da maior conquista que a diplomacia ambiental conseguiu até aqui: encarar o elefante, o bode e o vespeiro na sala.
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