Cerca de 200 famílias tiveram propriedades de plantação de uva atingidas; uma delas foi de Tiago Shutkovski, que também perdeu o pai na tragédia - Foto: Pedro Ladeira / Folhapress

A cidade de Bento Gonçalves, conhecida como capital nacional do vinho, teve boa parte da área rural atingida pelas chuvas que alagaram e destruíram cidades no Rio Grande do Sul e viu mais de 400 hectares de plantações de uva serem soterradas.

A estimativa é que a tragédia ambiental não tenha impacto relevante na produção de vinhos e espumantes, mas represente um abalo jamais visto no turismo da serra gaúcha, que recebe em média 3 milhões de visitants por ano.

Um dos desafios imediatos é escoar para outros locais a produção que geralmente é consumida pelo enoturismo em Bento Gonçalves, que fica a cerca de 120 km de Porto Alegre, e cidades próximas.

Os efeitos das chuvas já deixaram ao menos 157 mortos e 88 desaparecidos no estado, sendo nove óbitos e cinco sumidos em Bento Gonçalves. Os efeitos da tragédia já são sentidos na região. Hotéis suspenderam as operações, vinícolas estão vazias e o comércio local amarga uma baixa de vendas que nunca tinha presenciado.

Fábricas de vinho que abrem para visitação e costumam receber até 1.200 pessoas diariamente registraram dias com menos de 20 turistas.

Outro desafio é socorrer produtores rurais que plantam e vendem uvas para as empresas que produzem a bebida. A estimativa é que até 200 famílias possam ter sido diretamente atingidas.

Em alguns casos, produtores terão que tentar reconstruir suas propriedades enquanto convivem com o luto da perda de familiares. Um exemplo é Tiago Schutkovski, de 36 anos.

Ele perdeu nove dos 15 hectares de plantação, todo maquinário e estrutura, o que dá um prejuízo de no mínimo R$ 2 milhões, sem contar o lucro que as próximas colheitas gerariam.


Imagem de casa em que estavam os pais de Schutkovski e do que restou da caminhonete Ranger, da Ford, que seu pai tinha – Foto: Pedro Ladeira / Folhapress

O pior, porém, não foi isso. Um dos 104 deslizamentos registrados em Bento Gonçalves pegou a lateral da casa que fica no terreno.

O impacto da terra que desceu do morro fez cair o assoalho da casa e seus pais, que estavam no segundo andar, foram derrubados para o porão. A mãe, Clacir, 59 anos, sofreu diversos cortes e tomou 58 pontos, mas salvou-se porque caiu entre dois freezers. O pai, Luís Carlos, 71, sobreviveu num primeiro momento ao impacto da queda, mas, depois, não resistiu.

O deslizamento foi às 5h. Às 6h, um morador da região apareceu para atuar no resgate e chamou mais gente para ajudar. “Tiraram meu pai com vida, estava falando, estava normal”, relata Schutkovski.

“Vieram mais vizinhos, resgataram minha mãe. Quando foram pegar meu pai de novo, ele falou que não aguentava mais. Isso era por volta de 7h30, 7h45 e eu cheguei faltando pouquinho para as 7h” disse Schutkovski.

A aparência inicial, segundo ele, era que a mãe estava mais machucada, mas um problema de saúde de Luís Carlos foi determinante para o óbito.

“Ele tinha problema de circulação, tomava remédios para afinar o sangue e com qualquer cortezinho perdia muito sangue. E teve um corte no pé. No laudo, deu hemorragia”, diz.

Schutkovski recorde que o pai conquistou diversas premiações por plantar uma das melhores uvas do país em uma trajetória que começou em 1978, quando chegou naquela propriedade como colaborador. Em 2000, comprou o terreno.

“O xodó dele era aqui, o maior orgulho dele. Chegou aqui com uma carroça e uma sacola de roupas nas costas”, recorda.

Schutkovski trabalhava com o pai desde adolescente e diz que vai se esforçar para recuperar a produção no local. Segundo ele, dá tempo de manter a plantação deste ano para colher em 2025. “Nos seis hectares que restaram dá, mas no resto fica difícil prever quando retomaremos, até porque não tem nem como botar máquina para trabalhar, porque está tudo encharcado”.

Tiago perdeu o pai e nove hectares de plantação de uva foram destruídos – Foto: Pedro Ladeira / Folhapress

Ele diz que, se o pai estivesse dois metros para o lado na casa, teria sobrevivido. “Ele disse que daqui não saía, que ia ficar aqui, e ficou, né? Pelo menos minha mãe escapou”.

O presidente da União Brasileira de Vitivinicultura, Daniel Panizzi, afirma que o estado ainda vive uma situação muito sensível e que não é momento de iniciar uma campanha pela retomada do turismo, mas que após o período mais delicado será necessário algo nesse sentido.

“Nossa preocupação agora é com as cerca de 200 famílias que estão prejudicadas”. Um desafio será mostrar aos potenciais visitantes que a região turística de Bento Gonçalves não foi afetada, apenas a área rural”, diz Panizzi.

“Espero que até as férias escolares de julho haja uma recuperação mínima para dar um fôlego à economia da região”, acrescenta.

Outro problema que será enfrentado, segundo ele, é o fechamento temporário do aeroporto de Porto Alegre, por onde geralmente chegam turistas de outros estados.

Ele é diretor da vinícola Don Giovanni e afirma que o local recebia entre 200 e 300 pessoas em um sábado normal. No último, no entanto, apenas um casal esteve no estabelecimento.

“O prejuízo será de pelo menos R$ 500 mil em dois meses. Conversei com outros empresários e relataram que a situação é muito parecida. Somos uma vinícola de médio porte. Nas de grande porte, pode multiplicar todos os dados por seis”, afirma.

O prefeito da cidade, Diogo Siqueira (PSDB), teme uma queda no turismo. “O que me preocupa é as pessoas confundirem que a região turística foi impactada. Não aconteceu isso. O vale dos vinhedos está intocado. Houve problemas pontuais, mas nada comparada com o que teve aqui”, diz, em referência ao distrito de Faria Lemos, área rural do município.

Ele afirma que 40 geólogos de todo o país estão na cidade para estudar o solo da região e verificar quais locais ainda são seguros de haver plantação e residências.

“Entender por que tivemos tantos desmoronamentos, qual ponto de corte que temos que ter, quanto de chuva tem que cair para ocorrer novamente. Tendo dados, podemos prevenir. Não vou conseguir cancelar, mas vamos poder avisar a população de maneira assertiva, e não só criar pânico”.

*Com informações de Folha de São Paulo