Primeiro registro do mundo da espécie de ave tovacuçu-xodó (Foto: Ricardo Plácido)

Depois de enfrentar uma ‘odisseia’ de dez anos com caminhos repletos de obstáculos e desafios com sucuris, onças, carrapatos, bugios, tempestades e inúmeras tentativas frustradas, o biólogo Ricardo Plácido conseguiu o que pesquisadores e observadores de aves do mundo todo sonhavam em conquistar: o registro da ave tovacuçu-xodó (Grallaria eluden).

Em uma região do Parque Estadual Chandless, no Acre, ele fez, depois de três dias consecutivos de tentativas, as primeiras imagens com foco da espécie, que é uma ave enigmática e pouco conhecida da família Grallariidae, encontrada na Amazônia do leste do Peru e no oeste acreano.

Desde que a ave foi descrita, em 1969, pelos pesquisadores George Lowery e John O’Neill, através da captura de um indivíduo da espécie no Peru, o animal nunca tinha sido fotografado ou filmado por ninguém na natureza. O que se sabia sobre essa ave terrestre era apenas a vocalização e também alguns avistamentos, principalmente em terras peruanas.

As dificuldades para encontrar a espécie arisca são inúmeras, devido à baixa densidade populacional, e localização de difícil acesso, habita em emaranhados de mata, em meio a depressões, pirambeiras e igarapés.

“É uma ave extremamente inconspícua e uma das mais raras do mundo, pouco conhecida e bem complicada de encontrar. Às vezes você até ouve o canto, mas para ver é complicado. É um bicho furtivo, sorrateiro…. em outras palavras, um ninja das sombras”, conta Plácido.

O nome científico, inclusive, Grallaria eluden, faz alusão a este comportamento. De acordo com o biólogo, eludens, do latim, significa fugir, evadir.

Registros

Após 20 anos da descrição do tovacuçu-xodó, pesquisadores relataram ter ouvido a espécie em 1993 e posteriormente em 2001 e 2003, sempre no Peru.

Perto dos anos 2000, dois estrangeiros, Andrew Whittaker e o David Oren, disseram que ouviram a ave em território brasileiro, no Rio Juruá e no rio Moa, no Acre, durante levantamentos da avifauna local. Na mesma época, o ornitólogo Mário Cohn-Haft escutou o canto da espécie ao Sul do rio Solimões e outros brasileiros conseguiram gravar a vocalização da ave em partes diferentes da Amazônia do nosso país.

“Lembro que escutei um som diferente, que eu não reconheci, e pensei: ‘caramba não sei o que é isso!’. Mas pela qualidade do som achei que ou era um inhambu ou um tovacuçu. Fui pensando e passando a lista de espécies possíveis, e cheguei à conclusão que tinha que ser um grallarideo “, relembra Cohn-Haft, que guardava um carinho especial pelo tovacuçu-xodó, já que o pesquisador admirava muito quem descreveu a espécie.

Já em 2015, o pesquisador Fernando Igor Godoy gravou o som do tovacuçu-xodó em outra região brasileira, no município de Manoel Urbano, quase na fronteira com o Peru.

Ele conta que, antes de viajar para o Acre a trabalho, pesquisou as espécies que poderiam ocorrer na região que estaria e se deparou com o tal tovacuçu. Nisso, entrou em sites peruanos para ouvir a vocalização e guardou o som na memória.

Já o colega de profissão Ricardo Plácido, embora soubesse da presença da espécie no Acre desde 2013, começou de fato a embarcar na saga de procura em 2015, já que começou a trabalhar no Parque Estadual Chandless – onde se sabia da ocorrência da ave rara.

Ricardo imaginava que a missão não seria nada fácil, pois se tratava de uma espécie pequena e arisca em um território de 695.303 hectares, nos quais muitos nem conseguem se ter acesso.

O 1º encontro

“Foi em 2018 que eu vi a ave pela primeira vez. A gente estava fazendo um levantamento de espécies atrativas à observação de aves e nos deparamos com um igarapezinho. A equipe estava cansada e ensopada depois de uma chuva forte, mas quando, de repente, ouvi a espécie cantando, foi um alvoroço, eu não acreditava”, relembra.

Ricardo improvisou uma camuflagem e começou a tocar o canto da ave para ver se conseguia atraí-la para perto. E o tovacuçu-xodó finalmente se aproximou.

A partir daí até o ano de 2023 foram incontáveis expedições até o mesmo local em busca de um reencontro. Às vezes sozinho, às vezes acompanhado de ornitólogos e até dos mais conhecidos observadores de aves, enfrentando todos os tipos de desafios em meio a aventuras dignas de um roteiro de filme. Mas nenhum outro encontro ocorreu.

Ajuda dos ribeirinhos

Através de um programa do Governo Federal que estimula a participação de ribeirinhos nas unidades de conservação, Ricardo Plácido pediu para os moradores da região, que trabalhavam como monitores ambientais, saírem à procura do tovacuçu-xodó.

“Em 2023 um deles achou e conseguiu gravar a vocalização. Quando a gente chegou lá, meses depois que ele tinha visto, aconteceu a mesma coisa, um blowdown destruiu o ponto”, explica Plácido que ficava cada vez mais frustrado.

Meses se passaram e outro ribeirinho gravou, novamente, o canto da espécie, mas dessa vez em um local muito longe, a 120 km da sede do parque.

O encontro final

O biólogo aproveitou uma brecha na agenda e foi atrás da ave fantasma. Ele conta que, no primeiro dia, passou seis horas tentando. Depois que se escuta o canto da espécie, é preciso cautela e muita paciência, já que o animal se aproxima aos poucos, muito lentamente, e está sempre pronto para fugir ao detectar qualquer movimento brusco.

“Em determinado momento, toquei o playback, ele se aproximou, e depois se calou por 30 minutos. Demorou mais meia hora para ele aparecer de novo e eu fiquei calado, até que finalmente consegui um registro, mas muito desfocado e borrado”, conta.

A ave apareceu novamente, sorrateira pelo chão, e sumiu. Começou então, o jogo de esconde-esconde em que o biólogo ia atrás, lentamente, se embrenhando na mata, se arrastando pelo chão tentando uma aproximação, e o bicho dava as caras e logo desaparecia novamente. Apesar de quase não aparecer, o tovacuçu cantava sem parar. “Parecia que ele tinha ficado até rouco e decidi ir embora para não estressar o animal”, confessa o biólogo.

Só que desistir não era uma opção e no dia seguinte, Ricardo voltou. E o tovacuçu dessa vez, não apareceu nem por um segundo. No terceiro dia, no entanto, a sorte estava a seu favor.

“Logo que chegamos, a ave respondeu e aí eu fiquei mais ou menos quatro horas nesse tipo de xadrez, indo atrás. Você tenta enxergar e ele fica lá parado cantando sem parar, mas você não vê nada por conta da vegetação e aí fica tentando procurar uma janelinha, quando se mexe um pouquinho mais, ele percebe e vai para um lugar mais escondido ainda. É uma luta”.

Quase na hora de ir embora, o pesquisador, ao escutar mais uma vez o canto do tovacuçu, pediu ajuda do Pedro, zelador que ouviu a espécie e relatou meses antes, para realizar um tipo de cerco em volta da ave. Dessa forma, quando ela se mexeu enquanto um estava de um lado, o outro já segurava a câmera e conseguiu realizar os cliques.

“Foi uma emoção indescritível e agora meu objetivo é mostrar para a humanidade que existem espécies no nosso planeta que a gente nem conhece. É como se diz na biologia da conservação: se a natureza é um livro aberto, você extinguir uma espécie é como rasgar a página desse livro sem nunca ter lido o conteúdo da página, né? Então é algo que a gente precisa refletir”, finaliza Plácido.

Com informações do g1-Campinas