
O impacto ambiental dos veículos costuma ser medido principalmente pelas emissões de gases de efeito estufa que produzem. Estima-se que o setor de transportes seja responsável por cerca de 23% das emissões globais de CO². Porém, até no fim da vida útil, um veículo pode ser nocivo ao meio ambiente.
Quando um veículo chega ao fim da vida útil, grande parte acaba abandonada em vias públicas, pátios de órgãos de trânsito, terrenos baldios ou desmanches clandestinos, o que gera riscos ambientais e sanitários.
O descarte inadequado de veículos pode contaminar o solo, lençóis freáticos, nascentes e cursos d’água por meio da liberação de combustíveis, óleos lubrificantes, componentes químicos e similares. Para se ter uma ideia, um litro de óleo pode poluir até 20 mil litros de água.
“Também são extremamente nocivos ao meio ambiente os componentes dos veículos, que liberam metais pesados, entre os quais se destacam as baterias, cujo vazamento contamina severamente o solo e a água; e dispositivos eletrônicos que liberam elementos tóxicos e microcomponentes no meio ambiente” afirmou Roberto Gregorio da Silva Junior, professor do Departamento de Transportes da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
No Brasil, estima-se que apenas 2% dos veículos fora de uso sejam efetivamente destinados ao processo de reciclagem. Em outros países, esse índice é muito maior: na Argentina, no Japão e em países da Europa, varia entre 80% e 95%.
“Sem uma política pública que obrigue e facilite a destinação correta, o Brasil mantém um cenário de informalidade e desperdício, em vez de aproveitar o potencial econômico e ambiental que esses veículos representam”, ressalta Rodrigo Petry Terra, consultor jurídico do Sindicato das Empresas de Sucata de Ferro e Aço (SINDINESFA).
O que pode ser reciclado?
Um carro, a depender do modelo, pode ter de 3 mil a 30 mil peças. Mais da metade delas é feita de aço e outros materiais ferrosos. Mas o que pouca gente sabe é que boa parte delas pode ser reciclada ou reutilizada.
O aço, por exemplo, pode ser usado na construção civil ou retornar como peças estruturais de veículos. Já o alumínio pode ser reaproveitado na forma de blocos e outros componentes. Por sua vez, os pneus podem ser triturados e transformados em pisos, asfalto e diversos produtos.

Por outro lado, nem todo o plástico — que demora cerca de 450 anos para se decompor e está cada vez mais presente nos veículos — pode ser reciclado. Após o reprocessamento, esse material comumente perde qualidade. Assim, é utilizado apenas em aplicações menos exigentes ou na geração de energia.
“Considerando que a grande totalidade do material de um veículo é metálico, pode-se dizer que 85% das peças de um automóvel são recicláveis ou reutilizáveis. Os 15% restantes referem-se a materiais plásticos, espumas, vidros e líquidos – parte das quais pode ser reaproveitada, enquanto o restante torna-se resíduo” disse Júlio Cesar Luchesi, presidente e fundador da Associação Brasileira de Reciclagem Automotiva (ABCAR).
No país, o reuso de peças automotivas é regulamentado pela Lei nº 12.977, de 2014, e pela resolução nº 611 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). Ambas estipulam quais peças podem ou não serem reutilizadas. Itens de segurança, como airbags e cintos, por exemplo, não podem ser reaproveitados.
Como pode ser feita a reciclagem?
Roberto Gregorio da Silva Junior, professor da UFPR, aponta que, após serem retirados dos veículos, os componentes automotivos devem ser desmontados, descontaminados e devidamente separados para processamento e encaminhamento à reciclagem, reutilização ou remanufatura.
“Cada vez mais, os novos veículos estão utilizando materiais compostos, ligas leves e plásticos de engenharia, entre outros, que demandam soluções tecnológicas e escala para separação e processamento. Também é crescente, nos novos modelos, o uso de catalisadores, sensores e similares que contêm metais valiosos que podem ser recuperados, como é o caso da platina.”
Além disso, com a crescente presença de soluções voltadas à eletromobilidade, surge o desafio da destinação final das baterias dos veículos elétricos — cujo descarte inadequado pode causar sérios danos ambientais, além da perda de metais como lítio, cobalto e níquel.
“A reciclagem veicular tem potencial para gerar negócios sustentáveis, proporcionando empregos, renda e benefícios ambientais. Para isso, é necessário contar com uma cadeia de reciclagem eficiente e devidamente regulamentada, que se inicia com a coleta e logística adequadas para remoção dos veículos descartáveis, seguida de estruturas para triagem inicial e desmontagem”, ressaltou Silva Junior.
Wladi Freitas de Souza é um dos brasileiros que têm se dedicado à reciclagem de veículos. Ele é sócio-fundador e CEO da Green Way for Automotive (GWA), empresa que atua no processo de desmonte de veículos, separando peças e repassando-as a fornecedores de montadoras de automóveis, para que possam ser reaproveitadas na produção de novos carros.
“Hoje, a maior dificuldade está na separação dos materiais com a qualidade exigida pelos recicladores. Uma peça como o radiador, por exemplo, possui quatro materiais perfeitamente recicláveis (aço, alumínio, plástico e cobre). O desafio está em fazer essa separação com o nível de pureza necessário, o que se torna difícil devido à mistura. Por outro lado, tecnologias, máquinas e processos evoluíram muito – e melhoramos bastante o processamento dos materiais nos últimos anos” afirmou Wladi Freitas de Souza, sócio-fundador e CEO da Green Way for Automotive (GWA).

Até 2030, a GWA busca descontaminar e reciclar cerca de 100 mil toneladas de resíduos automotivos.
Principais dificuldades
Jomara Nogueira, pesquisadora e mestre em meio ambiente, saneamento e recursos hídricos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ressalta que, apesar dos avanços na política de reciclagem de veículos no Brasil, os maiores entraves atuais são motivados por:
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uma legislação pouco efetiva, carente de articulação com as diferentes normas existentes nas esferas municipal, estadual e federal, considerando as peculiaridades de cada região do país;
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baixa capacidade de fiscalização por parte do poder público;
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dificuldades de combate ao crime organizado relacionado à receptação ilegal de peças e à desmontagem clandestina;
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instalações físicas de desmontagem e reciclagem (muitas empresas são pequenos empreendimentos ou empresas familiares), com equipamentos impróprios ou insuficientes, o que dificulta a realização adequada da atividade;
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baixo emprego tecnológico e qualificação da mão de obra;
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informalidade e ilegalidade dos empreendimentos;
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falta de orientação ao cidadão por parte do poder público quanto à destinação adequada, ambiental e de segurança, dos veículos baixados
Para ela, políticas públicas que estimulem a regularização da atividade — por meio de linhas de crédito, reduções tributárias, subsídios e outros mecanismos — contribuiriam diretamente para a mudança desse cenário, tornando o custo da reciclagem mais competitivo no mercado e dificultando a sustentação dos negócios ilegais.
“Percebe-se a necessidade de uma maior integração entre as cadeias de valor e os fornecedores, que nem sempre são locais. Não há, até o momento, um sistema nacional coordenado que contemple o recebimento, a desmontagem, o reaproveitamento de peças e a reciclagem de resíduos automotivos. A logística reversa ainda ‘caminha’ lentamente na cadeia automotiva, com exceção de sistemas priorizados pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, como pneus e baterias chumbo-ácido, estes já bem estabelecidos” afirmou Jomara Nogueira, pesquisadora e mestre em meio ambiente, saneamento e recursos hídricos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Para isso, o Brasil pode se inspirar em exemplos de países que já conseguem reciclar cerca de 95% de sua frota, como o Japão — país que instituiu sua Lei de Reciclagem Veicular em 2005, a qual impõe às montadoras a reciclagem de airbags, fluidos e gases CFCs. Por lá, o consumidor paga uma taxa de reciclagem/recuperação no momento da compra de um veículo novo, a fim de financiar seu descarte e tratamento ao fim da vida útil.
Outra região avançada na política de reciclagem de veículos é a Europa. Em 2023, foi proposta uma nova regulamentação no continente que abrangem desde a fase de concepção de um veículo até sua destinação final. “Essas novas regras incluem a melhoria do design para facilitar a retirada de materiais e componentes para reutilização e reciclagem; uso de plásticos com, no mínimo, 25% de conteúdo reciclado; aumento da qualidade da matéria-prima recuperada; e proibição da exportação de veículos usados sem condições de circulação”, explicou Roberto Gregorio da Silva Junior, professor da UFPR.
Na Europa, também se aplica o princípio da responsabilidade estendida do produtor, que obriga as montadoras a financiarem parte da coleta e do tratamento dos veículos em centros autorizados – como já ocorre, por exemplo, na Espanha e na Alemanha. “Merece destaque também a existência de sistemas nacionais de rastreabilidade veicular, que acompanham o processo desde a baixa definitiva de circulação até o tratamento final nos centros autorizados”, afirmou Jomara.
O que pode ser feito
Pouca gente sabe, mas, quando um veículo deixa de circular, é importante que o proprietário procure o Detran para emitir uma espécie de “certidão de óbito” do automóvel, intitulada formalmente como Declaração de Baixa Definitiva do Veículo. Para isso, é necessário quitar todos os débitos do veículo, como IPVA e multas de trânsito.
