
Claudinei Martins, 54, lembra bem da “dureza” dos tempos de infância. Como filho caçula de 13 irmãos, era o último a herdar as roupas que haviam sido usadas pelos mais velhos.
“Hoje, a minha filha de 14 anos tem mais roupas do que eu e meus irmãos tínhamos juntos”, brinca o executivo, diretor comercial e de marketing do grupo Kyly, dono de marcas como Milon, Lemon e Amora.
Maria Eduarda, a filha de Martins, é de certa forma privilegiada pelo fato de o pai trabalhar na maior fabricante nacional de vestuário infantil, com sede em Pomerode (SC) e faturamento anual na casa dos R$ 700 milhões. Mas a verdade é que, como filha única, ela está repleta de regalias.
O Brasil está se tornando o país do filho único. De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), nos anos 1970, o país apresentava uma taxa de 5,7 filhos por mulher. Hoje, a taxa de fecundidade está em 1,7, com tendência de queda.
Mas diferentemente da China, onde a política do filho único vigorou por 35 anos (de 1980 a 2015) por uma imposição do Estado, aqui no Brasil o filho único tem sido adotado por uma questão econômica.
Manter um filho em uma escola particular no estado de São Paulo, por exemplo, sai em média R$ 1.709 ao mês, segundo pesquisa do site Melhor Escola. Se for na capital paulista, a média sobe para R$ 1.912 —valor 45% superior ao do salário mínimo (R$ 1.320).
O mercado de consumo e serviços tem procurado se adaptar à redução do tamanho das famílias.
Indústrias de alimentos lançam embalagens menores, confecções infantis “esticam” as coleções até o tamanho 20, agências de viagem apostam na oferta de resorts para compensar o menor número de hóspedes, construtoras investem em apartamentos de dois dormitórios de até 50 m² e até a indústria automobilística lança SUVs compactos, depois de aposentar as minivans.
“Os hábitos mudam conforme as famílias se transformam”, diz o sociólogo Gabriel Rossi, professor de comunicação e consumo da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).
“Já não existe aquele momento de comunhão em torno da mesa, por exemplo, com uma pessoa cozinhando para a família toda, agora o que impera é a praticidade do delivery”, afirma.
Da mesma forma, a TV perdeu o posto de central de entretenimento da casa: agora cada um tem o seu celular e o seu próprio consumo de mídia. “Existe um certo grau de solitude nas famílias de filho único, às vezes com mãe solo, que tem sido preenchido com a adoção de pets”, diz Rossi.
Pet vai tomando o ‘lugar’ do segundo filho
Não por acaso o mercado pet cresce a dois dígitos todo ano. Em 2022, apresentou um faturamento de R$ 60 bilhões, alta de 16% sobre o ano anterior, segundo o Instituto Pet Brasil.
A título de comparação, trata-se de um volume que supera em mais de 70% o mercado de linha branca no país, que faturou R$ 35 bilhões no ano passado, segundo a consultoria GfK.
Para este ano, a projeção do setor pet é vender R$ 67,4 bilhões, entre ração, animais, serviços, atendimento veterinário e medicamentos.
Uma pesquisa conduzida pela Nestlé no Brasil no ano passado identificou que 55% das famílias possuem criança em casa, enquanto 77% delas têm pets.
O cenário é corroborado por outro levantamento, da Kantar, que apontou que em 2022, em volume, houve um aumento de 6,4% na venda de ração para cães, alta de 5,5% na venda de comida para gato, enquanto as vendas de fraldas descartáveis caíram 0,4% em comparação ao ano anterior.
O mercado de fraldas descartáveis, por sinal, encolheu 7,4% no Brasil entre os anos de 2014 e 2022, para 8,7 bilhões de unidades, segundo a Kantar.
Motivo de sobra para a Nestlé, dona do icônico Leite Ninho, investir R$ 2,5 bilhões em uma nova fábrica da marca Purina em Vargeão (SC), voltada à produção de alimentos para cães e gatos. O projeto foi anunciado no fim de 2021.
Embalagens menores no lugar do ‘tamanho família’
“Temos percebido essa diminuição no número de filhos nos lares e procuramos revisitar o nosso portfólio, fazendo adaptações conforme as novas tendências”, diz Raquel Albernaz, diretora de inteligência de mercado e consumo da Nestlé Brasil.
Como exemplos, ela cita as novas embalagens de biscoitos, uma categoria de alto consumo em lares com crianças.
“Lançamos cookies em embalagens individuais: é um tamanho excelente para a lancheira, além de ser uma porção exata para as crianças, tendo em vista a preocupação dos pais com a alimentação”, diz. “Também atende famílias menores, que não precisam abrir um pacote enorme de biscoito, que acabava murchando.”
Com a mesma proposta, a empresa lançou o Moça Mini, o “Mocinha” de leite condensado, em uma versão de 65 gramas, para consumo individual. Uma lata tem 395 gramas.
‘Um só filho envolve menos quantidade e mais qualidade’
Na opinião do economista Roberto Kanter, professor de MBAs da FGV (Fundação Getulio Vargas) e especialista em comportamento de consumo, o achatamento da pirâmide demográfica pode ser conjuntural —não necessariamente estrutural.
“Hoje os brasileiros têm menos filhos por fatores sociais, culturais e, principalmente, financeiros. Mas nada impede que, em um momento de maior segurança econômica, as pessoas estejam dispostas a terem mais filhos”, afirma.
De qualquer forma, segundo Kanter, se a economia do filho único no Brasil tem provocado uma diminuição na quantidade de consumo de produtos, ela é acompanhada da busca por mais qualidade.
“Se você só tem um filho, vai procurar dar o melhor para ele”, afirma. “Vai comprar as melhores roupas, os melhores sapatos, os melhores brinquedos, dar celular, matricular na melhor escola e proporcionar o melhor lazer. Afinal, você só tem ele”, diz.
A Kyly percebeu este movimento. “Antes de o bebê completar um ano, existe uma série de eventos comemorativos na vida dele”, diz Claudinei Martins.
