Araras-canindés voltam à Floresta da Tijuca após dois séculos de extinção - Foto: Divulgação / Flavia Zagury

O Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro, recebeu no início de junho quatro araras-canindés( Ara ararauna) como parte de um projeto histórico de reintrodução da espécie, extinta da região há mais de 200 anos.

A ação é conduzida pelo programa Refauna com o apoio do ICMBio, e visa restaurar funções ecológicas da Mata Atlântica, um dos biomas mais ameaçados do mundo. As aves passam por um período de aclimatação em recinto fechado antes de serem soltas na floresta.

Em entrevista, a coordenadora do Refauna, Lara Renzeti, e a chefe do Parque Nacional da Tijuca, Viviane Lasmar, explicaram os critérios técnicos e científicos que permitiram a reintrodução. Elas destacaram o longo processo de avaliação histórica, comportamental e sanitária dos animais, além da importância do envolvimento da sociedade na preservação da espécie e no sucesso do projeto.

Pesquisa histórica e condições ambientais tornaram retorno possível

De acordo com Lara Renzeti, a ideia de reintroduzir as araras-canindés no Rio de Janeiro só avançou após a confirmação de que a espécie realmente existia na região no passado.

“ Buscamos registros em relatos de viagem e coleções em museus desde o século XVI. Os resultados confirmam a ocorrência da espécie no Rio até o início do século XIX ”, explicou.

Com essa comprovação, a equipe avaliou as condições ecológicas do Parque Nacional da Tijuca e identificou mais de 90 espécies de plantas das quais as araras poderiam se alimentar, algumas com oferta de frutos durante todo o ano.

A presença de alimento disponível ao longo das estações e a segurança ambiental oferecida pelo Parque foram fatores essenciais para a viabilidade da reintrodução.

“ Como uma ave capaz de dispersar sementes grandes a longas distâncias, a arara-canindé contribui diretamente para a regeneração da floresta. Restaurar essa função ecológica é um passo importante na recuperação da Mata Atlântica ”, afirmou Lara.

Foto: Divulgação / Flavia Zagury

Para viabilizar a reprodução das aves, a equipe instalou ninhos artificiais em locais estratégicos da floresta, já que há escassez de palmeiras grandes o suficiente para a nidificação. O ICMBio apoiou tanto a construção quanto a instalação dos ninhos.

Viviane Lasmar, que lidera a gestão do Parque Nacional da Tijuca, ressaltou a importância de realizar o projeto dentro de uma Unidade de Conservação consolidada.

“ Completamos 64 anos mantendo os limites do Parque preservados, mesmo com a intensa urbanização ao redor. A segurança e o equilíbrio ecológico que conseguimos manter aqui são essenciais para o sucesso dessa iniciativa ”, disse.

Triagem comportamental e sanitária foi rigorosa na escolha das aves

A escolha dos animais para a reintrodução exigiu um rigoroso processo de triagem que incluiu avaliação de comportamento, exames de saúde e análise de musculatura. Lara explicou que, por se tratar de um ambiente urbano, os animais não poderiam estar acostumados com humanos.

“ É necessário que tenham algum grau de aversão às pessoas para evitar a aproximação após a soltura. Além disso, não podem carregar patógenos que ofereçam risco a outras espécies ”, afirmou. Dos 26 indivíduos analisados, apenas quatro cumpriram todos os requisitos e foram selecionados para integrar o primeiro grupo.

As quatro araras — um macho e três fêmeas — vieram do Refúgio das Aves, localizado em Aparecida (SP), que atua na reabilitação de animais silvestres.

“ O trabalho feito lá permite que aves com comportamento preservado retornem à natureza. A musculatura, o voo, a saúde e o comportamento foram determinantes para a seleção ”, disse Lara.

Durante o período de aclimatação, os animais são observados diariamente quanto à alimentação, sociabilidade e capacidade de voo, além de passarem por sessões de monitoramento entre os horários de alimentação.

Viviane reforçou o pedido para que visitantes do Parque não tentem se aproximar do recinto, mesmo diante da curiosidade gerada pelas vocalizações das aves.

Foto: Divulgação / Flavia Zagury

“ Entendemos a empolgação, mas essas interações podem prejudicar todo o trabalho. Se as araras se acostumarem com a presença humana, isso compromete a possibilidade de soltura bem-sucedida. Por isso, pedimos compreensão e paciência. Todos terão a chance de vê-las em liberdade ”, disse.

Durante o período de aclimatação, os pesquisadores instalaram ninhos artificiais com ovos de galinha para simular as futuras condições de reprodução das araras e identificar possíveis predadores. Os resultados mostraram que todos os ninhos foram visitados por macacos-prego, que consumiram todos os ovos.

“ Isso indica que o macaco-prego é o principal predador em potencial dos ovos da arara-canindé dentro do Parque. A partir dessa informação, vamos desenvolver manejos específicos, como barreiras metálicas nas árvores, para impedir o acesso ”, explicou Lara.

A preocupação com predadores não anula o papel do Parque como local seguro, segundo Viviane. “ O Parque protege a fauna como um todo. É natural que haja predadores e, por isso, nosso trabalho envolve encontrar estratégias de equilíbrio. Essa convivência entre espécies é parte do funcionamento do ecossistema ”, afirmou.

Ela ressaltou que o manejo adaptativo é uma das chaves para garantir o sucesso da reintrodução, com ações baseadas em dados reais e observação constante dos comportamentos.

Além disso, Viviane explica que o aumento da visitação nos parques nacionais oferece novas oportunidades para reforçar a importância da proteção da fauna.

“ Tivemos 4,6 milhões de visitantes em 2024 apenas aqui. A aproximação do público com as Unidades de Conservação é uma oportunidade valiosa para ampliar a conscientização ambiental e mostrar a importância do que estamos fazendo com as araras ”, completou.

Projeto prevê ampliação da população com foco na reprodução

A meta do Refauna é estabelecer uma população reprodutiva de araras-canindés no Parque. Segundo Lara, o grupo atual representa apenas o início do processo. “ Seguimos avaliando outros indivíduos para reintrodução. Quanto maior for o número de animais soltos, maiores são as chances de formação de casais, reprodução natural e estabilização da população ”, explicou.

O projeto busca, em longo prazo, eliminar a necessidade de intervenção humana para que a espécie sobreviva no ambiente natural da Tijuca.

Araras-canindés voltam à Floresta da Tijuca após dois séculos de extinção – Foto: Divulgação / Flavia Zagury

A soltura definitiva ainda não tem data exata, mas deve acontecer nos próximos meses, dependendo do progresso da aclimatação. Mesmo após a liberação, os pesquisadores vão continuar com o monitoramento diário dos animais, incluindo a oferta de suplementação alimentar em plataformas suspensas e o acompanhamento do comportamento e condição física das araras.

Viviane Lasmar acrescentou que o trabalho com fauna já faz parte da história do Parque e que a chegada das araras-canindés representa um novo capítulo. “ Já reintroduzimos bugios, cutias e jabutis com sucesso. Agora, as araras elevam o nível do projeto e mostram que, mesmo em um parque urbano, é possível reverter séculos de perdas com ciência, dedicação e colaboração ”.

Ela pediu atenção especial após a soltura. “ Se uma arara aparecer próxima às casas, não alimentem, não tentem interagir. A colaboração da população do entorno é decisiva para que esse projeto dê certo ”, afirmou.

Para Viviane, o Parque não pode cumprir seu papel sozinho. “ A natureza se regenera com o trabalho conjunto entre ciência, sociedade e gestão pública. E o voo das araras será o maior símbolo desse esforço coletivo .”

*Com informações de IG