É um erro tratar todos os evangélicos como farinha do mesmo saco fundamentalista, e o PT precisa enxergar o segmento com menos generalizações e mais respeito. É nesses termos que o partido do presidente Lula tenta reatar laços com um campo que, se hoje o rejeita em massa, já lhe deu a maioria dos votos no passado.
Essa é a teoria expressa na recém-lançada “Cartilha Evangélica: Diálogo nas Eleições”, formulada pela Fundação Perseu Abramo, centro de estudos da sigla, para orientar militância e candidatos no trato com evangélicos. Se as diretrizes ali colocadas vão virar prática, aí é outra história.
O documento elenca recomendações para lidar com os fiéis, como a de não encarar todos eles como fundamentalistas. O termo é associado a uma extrema direita cristã que, no Brasil, aparentou-se ao bolsonarismo.
Valem as palavras de H. E. Fosdick, pastor que enfrentava o mesmo dilema nos EUA dos anos 1920: “Todo fundamentalista é conservador, mas nem todo conservador é fundamentalista”.
Diz o PT de 2024: a maioria dos evangélicos brasileiros é conservadora, mas unificá-la “sob a alcunha de fundamentalista demonstraria preconceito e poderia ser interpretado como perseguição religiosa, entregando-as para o fundamentalismo”.
Por sinal, o texto lembra que pentecostal/neopentecostal não é sinônimo de fundamentalista ou conservador, deslize comum nas esquerdas.
Não é de hoje que a legenda busca conciliar suas raízes progressistas com um nicho majoritariamente conservador, um Tetris eleitoral que acumula mais derrotas do que vitórias.
Após perder o pleito de 1989, Lula avaliou que o PT fez pouco para desbaratar a fake news de que fecharia igrejas evangélicas se vencesse. “Certas coisas nós discutíamos a partir da nossa cabeça, a partir da cabeça do pessoal politizado. Quando disseram que a gente ia acabar com as religiões não católicas, nós fizemos um único programa especial sobre o tema.”

Para diluir desconfianças, o petista produziu uma carta ao povo evangélico nas campanhas de 2002, com mais sucesso, e 2022, quando o apreço por Jair Bolsonaro (PL) já havia contaminado os templos com um vigor que o PT torce para não ser irrevogável.
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, e autor da tese de doutorado “O Deus nas Urnas”, o sociólogo Alexandre Landim aponta erros e acertos no material de agora.
De ruim, há inclusive um tropeço teológico. O manual traz uma foto de Lula com a imagem de Cristo crucificado ao fundo, símbolo católico inexistente nos templos da outra ala cristã. “Essa gafe só mostra que o PT ainda tem muito a aprender sobre o universo evangélico.”
Outro estranhamento é o uso da primeira pessoa em “nós evangélicos”, algo “que não cola, pois o PT possui suas raízes no catolicismo de esquerda, fato de amplo conhecimento”. A sigla tem um núcleo evangélico, mas sua capilarização no segmento sempre foi reduzida.
O documento tem seus méritos e funciona mais como “uma prevenção a equívocos semelhantes ao de Fernando Haddad em 2018, quando ele chamou Edir Macedo de charlatão, do que para conquistar os votos evangélicos”, afirma Landim.
O atual ministro da Fazenda, então presidenciável, associou o líder da Igreja Universal ao “fundamentalismo charlatão” e disse que ele tem “fome de dinheiro”. A Universal o acusou de “incitar uma guerra religiosa”. Muitos pastores se solidarizaram com Macedo na ocasião, reforçando a fama do PT como inimigo dos crentes.
A cartilha de 2024, além de pedir parcimônia na vinculação com o fundamentalismo, sugere cautela para que os fiéis não confundam críticas pontuais a um pastor com ataques à fé evangélica. Seria “inócuo”, fora “soar como perseguição religiosa”, generalizar erros cometidos por um crente como um mal inerente a essa religião. Construções como “os evangélicos isso ou aquilo” seriam contraprodutivas.
Outro conselho: orientar candidatos a “não exagerar em falar o nome de Deus”, sob o risco de parecer falso. Ocorreu com José Serra (PSDB) na eleição de 2010. “Ele exagerou na construção da persona religiosa, como na distribuição de santinhos [que diziam ‘Jesus é a verdade e a justiça’]”, afirma o sociólogo. “Quando o aborto da esposa veio à tona, ele foi desmoralizado e perdeu votos.”
É o chamado “Efeito Fariseu”, apelo exagerado à religiosidade sem lastro com a fé que o candidato de fato pratica no dia a dia.
