Foto: Márcia Costa Rosa

A irreverência brilhante dos textos do advogado Félix Valois, nos conduz neste ‘Artigo de Domingo’ aos caminhos sombrios da invasão dos aparelhos celulares na vida de todos nós, em qualquer área que se possa imaginar, das transações comerciais a relações pessoais, passando, com domínio cada vez maior, por todas as fases da infância dos nossos filhos e netos. Um artigo leve, fluido e divertido, mas que impõe uma urgente e necessária reflexão sobre até onde podemos permitir tal invasão. Boa leitura.

 

Celulares (Por Félix Valois)

O sistema jurídico nacional, envolvido por uma tendência globalizante, proíbe uso e venda de determinadas drogas. Mesmo o cigarro comum não escapa de sua alça de mira. É certo que ainda não foi criminalizado o ato de fumar (ainda bem), mas anda perto disso, tantas e tamanhas são as restrições e constrangimentos impostos aos viciados, como eu. Essa preocupação governamental, que às vezes raia a histeria, bem que se poderia voltar para um fenômeno surgido, pode-se dizer, recentemente. À falta de denominação consagrada, eu o chamaria de “psicose eletrônica” e, arvorando-me à construção de uma base teórica, definiria o conceito como a utilização abusiva dos aparelhos eletrônicos, oriundos da informática, notadamente o telefone celular.

As crianças (e tiro pelas minhas netas) não podem ver uma dessas coisas que sua atenção é imediatamente voltada para uns joguinhos cretinos que são oferecidos a mancheias. E com que habilidade elas se entregam ao divertimento! A felicidade se alia à impressionante rapidez, e lá estão elas passando o dedo na tela com uma versatilidade de fazer inveja a profissionais. Tem de tudo nos tais jogos: gato, coelho, tigre, fada, duende. Só não identifiquei ainda nada que possa ter o mínimo teor educativo. Acho que não vai demorar para aparecer alguma coisa explicando que menina deve usar vestido cor de rosa, enquanto menino há de vestir roupa azul. Será a divulgação estrutural de um modo de pensar de novo tipo, lançado depois que Jesus Cristo foi visto no alto de uma goiabeira, a bom se deliciar com os frutos da árvore.

Torcendo para que o Nazareno tenha equilíbrio suficiente e não sofra um tombo nessa sua aventura goiabal, insisto na questão dos eletrônicos. Entre marmanjos e marmanjas a coisa é mais séria e adquire foros de monomania, tal a intensidade com que os sintomas se manifestam, às claras, sem nenhum pudor. O rapagão e a moçoila se dão as mãos, que o namoro já foi entabulado. E lá se vão a passear, lépidos e fagueiros, cada um com fones atochados nos dois ouvidos, esquecidos do mundo e, o que é pior, da existência de automóveis e caminhões que, se já são perigosos para quem vê e ouve, imagine para quem tem um dos sentidos prejudicado. Mas, qual o quê? Importa é o som legal que está sendo transmitido e o resto que se dane. Mesmo que esse som seja o terrível esguicho de um axé ou o pavoroso e falso lirismo de uma dupla sertaneja. Pensar em Mozart é pecado mortal, punível com as chamas eternas do inferno. Até a MPB parece definitivamente excluída desse circuito.

O mesmo casal se encontra no barzinho. Os fones são tirados dos ouvidos porque é preciso consultar o garçom antes de fazer os pedidos. Superado esse incômodo, o celular volta a demonstrar suas utilidades, enchendo-se as telas de mensagens edificantes, vez que não há porque perder tempo conversando se tudo pode ser dito eletronicamente. Parte do cavalheiro a primeira mensagem: “A gente pode fazer imoralidade hj?” Resposta imediata da lady: “Hj não dá”. Insistência: “Pq?” E a volta: “Pq eu num tô afim, cara”. A decepção se expressa do modo mais gentil possível: “Cê tá é muito careta, mina”. E nessa sublime linguagem de abreviaturas e contrações vai frutificando e se desenvolvendo aquele amor, cuja intensidade não foi sequer pensada pelos amantes de Verona. Afinal, eles não tiveram a felicidade de conhecer o celular. Talvez só por isso tiveram fim tão trágico.

Nos negócios, na política, no lazer, nos esportes, em tudo é possível detectar a onipresença desse aparelhinho que, o que tem de pequeno, tem de insuportável. Já não é possível pagar uma conta pela internet sem que o celular tenha que meter seu bedelho. Não se consegue fazer uma transação comercial sem que as partes cumpram a obrigação de trocar endereços eletrônicos, num ritual assustadoramente macabro. Acho mesmo que foi o celular o culpado por esse imbróglio em que se meteram o Queiroz e o Primeiro Filho, enquanto exerciam a nobre arte a que tão suposta e eficazmente se dedicaram, ao longo de alguns mandatos legislativos.

Tudo pode o celular. Inclusive facilitar a espionagem policial, esta outra praga que ganhou dimensões epidêmicas, ao argumento de que não pode haver limites no combate ao chamado crime organizado. Privacidade é coisa do passado, um obsoletismo que não se deve impor às exigências da modernidade, dinâmica, pulsante, irrefreável. O Grande Irmão sempre pode (eu ia dizendo “há de”) estar escutando sua conversa para, ao depois, deflagrar uma operação de nome bíblico e fazer as delícias dos que anseiam pela repressão, digerindo ódio.

É verdade: o celular pode tudo. Acho que me considerarão saudosista lembrando que o presidente Tancredo Neves sempre recomendou: telefone é para marcar encontro. E não ir. Como seria bom!