A intenção parecia louvável: levar o desenvolvimento agrícola e pecuário para o oeste da Amazônia sem destruir o ambiente. Mas aconteceu o oposto. Em 2018, o governo federal anunciou o projeto de criar a Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira (ZDS Abunã-Madeira), numa área de 458 mil quilômetros quadrados – ou cerca de 10% da Amazônia brasileira – na confluência do Acre, Amazonas e Rondônia. Ao contrário do que se queria, no entanto, o desmatamento do território disparou e em 2022 representou 76% do registrado nesses três estados.
Os dados são de um estudo realizados por pesquisadores brasileiros e publicado na revista Perspectives in Ecology and Conservation. “Estávamos analisando a expansão da fronteira agrícola no Brasil e notamos que havia uma dinâmica de avanço na Amazônia, especialmente naquela região do projeto”, conta o geógrafo Michel Eustáquio Dantas Chaves, do câmpus de Tupã, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), um dos autores do trabalho. “Da análise que fazíamos de áreas de expansão da fronteira agrícola surgiu a hipótese de que, na região na qual se pretende criar a ZDS Abunã-Madeira, está acontecendo uma dinâmica similar à ocorrida na realidade geográfica do Matopiba.”
A palavra é um acrônimo, que designa uma região formada por partes dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Originalmente coberta pelo Cerrado, a área foi severamente impactada pelo avanço da monocultura da soja nas últimas décadas. “Os dados do nosso estudo sobre a ZDS Abunã-Madeira mostravam que havia tendência de expansão do arco do desmatamento para áreas mais conservadas localizadas nas porções Oeste e Norte do bioma amazônico, com a conversão de florestas em pastagens e áreas agrícolas”, explica do cientista ambiental Felipe Gomes Petrone, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), outro autor da pesquisa.
Daí surgiu a hipótese de que a intenção de criar a ZDS estaria estimulando especulação fundiária, degradação florestal e desmatamento. O objetivo do trabalho foi então comprová-la, ou seja, verificar se a região onde se pretende instalar a ZDS Abunã-Madeira está, realmente, se tornando um hotspot de degradação florestal e desmatamento. “O objetivo foi alcançado”, garante Chaves. “Conseguimos fazer essa avaliação. A hipótese foi confirmada: os níveis de degradação florestal e desmatamento aumentaram desde o anúncio do projeto, em 2018.”
A pesquisa abrangeu os 32 municípios contidos no projeto para receber a ZDS Abunã-Madeira. Em complemento, os pesquisadores também analisaram os 16 municípios que fazem fronteira imediata com eles para verificar como estava o cenário fora da área abrangida. “Para fazer o estudo, unimos dados sobre desmatamento, disponibilizados pelo Projeto de Monitoramento de Desmatamento na Amazônia Legal por satélite (Prodes), desenvolvido pelo Inpe; uso e cobertura da terra, disponibilizados pela plataforma MapBiomas; e degradação, fornecidos pelo Centro Comum de Pesquisa da Comissão Europeia (JRC)”, explica Petrone.
Os dados foram analisados para a área de estudo por meio de metodologias baseadas em geoprocessamento e testes estatísticos. Os intervalos temporais foram os de 2013 a 2017 (pré-anúncio do projeto) e 2018 a 2022 (pós-anúncio). “Constatamos esse cenário de especulação fundiária e pressão intensa”, diz Chaves. “A princípio, conseguimos colocar o tema em discussão em escalas local, nacional e internacional e contribuir com o debate sobre planejamento e ordenamento territorial no Brasil.”
Os pesquisadores lembram que a ZDS representa 23,37% da área total dos estados do Acre, Amazonas e Rondônia e abriga 86 unidades de conservação (UC), 49 terras indígenas (TI), cerca de 95 mil km² de florestas públicas ainda sem destinação específica e 1,7 milhão de habitantes. “Desde o anúncio da criação da ZDS, em 2018, a região enfrenta especulação fundiária, aumento das taxas de desmatamento e posterior conversão de florestas em pastagens e terras agrícolas”, escrevem os pesquisadores no artigo.
Os números levantados mostram que, em 2021, 64,08% do desmatamento na área da ZDS ocorreram em terras públicas (UCs, TIs e florestas). Além disso, os conflitos fundiários e a violência contra os povos indígenas vêm aumentando, “reforçados pelo cenário político permissivo”. De 2012 a 2020, 5,23% da área da ZDS Abunã-Madeira sofreu conversão de formações florestais para usos antrópicos do solo, principalmente para pastagem (78%). Estudos recentes apontam que a conversão do uso da terra nesta região está ligada principalmente à grilagem, exploração madeireira e queimadas, fatores que levam à degradação e derrubada da mata e expansão do arco de desmatamento para áreas florestais preservadas.
O artigo científico produzido a partir do estudo alerta para o fato de que somente definir zonas de desenvolvimento agrário sem que haja avaliações de impacto socioambiental e políticas públicas pode levar a mais prejuízos do que avanços para o setor agroambiental.
Além de resultar em perdas socioeconômicas e em vulnerabilidade ambiental local, isto desfavorece a atividade agropecuária, por conta da perda de condições edafoclimáticas (características definidas por meio de fatores do meio tais como o clima, o relevo, a litologia, a temperatura, a humidade do ar, a radiação, o tipo de solo, o vento, a composição atmosférica e a precipitação pluvial) essenciais a essas atividades.
Para Chaves, o agricultor precisa ser o grande aliado da proteção ambiental, já que a produtividade melhora e avança com a conservação de vários fatores da natureza – responsável por fornecer chuva, ciclagem de nutrientes, polinização e outros. “Perturbar a regulação climática e o ciclo da água útil para a produção agrícola em estados produtores relevantes pode gerar perdas bilionárias”, adverte.
Segundo Petrone, a aplicação prática do estudo depende de vontade política. “De nossa parte, podemos dizer que as instituições que fazem ciência no Brasil estão funcionando e trazendo evidências que podem subsidiar tomadas de decisão assertivas”, assegura. “O país já errou muito por não considerar evidências científicas. Há conversas para desenvolver, a partir deste e outros estudos, iniciativas que visem planejar outras formas de produção agrária e pecuária que não estejam relacionadas à dinâmica de desmatamento e degradação.”
Chaves, por sua vez, diz que é importante incentivar o desenvolvimento sustentável, atrelado a iniciativas que mantenham a floresta em pé, como a produção por meio de sistemas agroflorestais ou integração lavoura-pecuária-silvicultura e, até mesmo, políticas de pagamentos por serviços ambientais. “Sabemos que a criação de uma zona de desenvolvimento é relevante, principalmente para que moradores de fora dos grandes centros tenham acesso a condições de trabalho e de crescimento e possam produzir produtos e renda”, explica. “Contudo, é preciso ter governança, garantindo que essa produção obedeça às leis, gere renda e seja vetor de desenvolvimento para a região, não somente exploração. O Brasil é um local com condições raras para que isso dê certo.”
Outro lado: Um Só Planeta entrou em contato com os governos do Amazonas, Acre e Rondônia. Apenas o do Acre deu uma resposta efetiva, dizendo que, com a troca do governo federal, o projeto está parado. A reportagem também procurou o Ministério da Integração do Desenvolvimento Regional, Sudam (que seria a gestora executiva do projeto), Suframa e Embrapa. A Sudam não respondeu até o fechamento da matéria. Suframa e Embrapa disseram que não é com elas.