Foto: iStock

Embora o Brasil concentre cerca de 12% das reservas hídricas do planeta, a água é um bem em constante disputa no país. De acordo com um levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 2005 e 2021, os conflitos por água aumentaram 481% no território nacional. Mais de 80% dos casos foram registrados nas regiões Nordeste, Norte e Sudeste.

Além de situações como desabastecimento e contaminação de rios e comunidades, esses conflitos também têm deixado um rastro de violações de direitos humanos. Desde 2003, pelo menos 34 pessoas já foram assassinadas em decorrência de disputas por água.

Um caso emblemático dessa violência foi a execução de seis pessoas e o desaparecimento de outras duas nas comunidades que vivem ao longo dos rios Abacaxis e Mari-Mari, nos municípios de Nova Olinda do Norte e Borba, a 135 quilômetros de Manaus (AM), em 2020.

O que tem gerado esses conflitos? Como a população é afetada? E qual o caminho para reverter esse cenário? Ecoa ouviu especialistas para responder essas e outras questões sobre o assunto.

Quais as principais causas dos conflitos por água no Brasil?

Coordenadora nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Isolete Wichinieski explica que as disputas estão relacionadas à construção de barragens, hidrelétricas, mineração e uso das águas pelo agronegócio.

Ela cita a construção das Usinas Belo Monte, Jirau e Santo Antônio do Rio Madeira e o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho como casos que impactaram uma série de comunidades que dependem da água para preservação de seu modo de vida.

Somente no primeiro semestre deste ano, foram contabilizados 80 conflitos por água no país, número que segue a média de registros da CPT nos últimos anos. Os estados com mais disputas são Bahia, Pará e Maranhão.

“Registramos conflitos no campo desde 1985 e percebemos que havia um conflito específico envolvendo a construção de barragens. Depois de 2003, vimos que esses conflitos foram se ampliando, não só pela questão das barragens, mas também pelo uso e acesso à água, pelo cercamento de determinadas áreas, pela diminuição e contaminação das águas nos rios e desvios para grandes fazendas.” afirmou Isolete Wichinieski, coordenadora da CPT

Usina de Jirau, construída no rio Madeira – Foto: Noah Friedman-Rudovsky / The New York Times

Segundo Isolete, parte dessa exploração indiscriminada é legalizada por meio de outorgas de acesso à água concedidas pelo poder público.

Como funcionam as outorgas de água?

Membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Maiana Maia Teixeira explica que as outorgas de água são autorizações para uso dos recursos hídricos fornecidas pelo poder público federal ou estadual. Na prática, trata-se de uma espécie de licença muito simples, na qual os próprios empreendimentos informam em sua solicitação o quanto de água pretendem utilizar.

Não há, contudo, capacidade técnica para fiscalizar essa utilização nem critérios para que cada concessão esteja atrelada a uma política de interesse público.

“Essa lógica de uso da água não é a mesma que a nossa, com hidrômetro, para pagar o quanto consumimos. Existe uma diferença gritante e omitida do debate público sobre como os grandes CNPJs têm um tratamento muito facilitado para acessar vazões imensas.” afirmou Maiana Teixeira, da Rede Brasileira de Justiça Ambiental

Ela salienta que um levantamento recente feito pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), através do Cadastro Nacional de Recursos Hídricos (CNARH), mostrou que, no campo do agronegócio por irrigação e da mineração, existem outorgas que sequer trazem informações sobre a vazão de água a ser utilizada ou qual corpo hídrico seria explorado.

Essa situação, frisa Maiana, é um indicativo sobre a fragilidade do sistema e da política de gestão da água no país. “Como se vai dar uma nova outorga sem olhar como está aquela bacia hidrográfica, sem um planejamento ambiental? É um cálculo que precisa ser feito nessa complexidade, e não somente com a prerrogativa de que, para os negócios, tem água.”

Para se ter uma ideia, a demanda por água do agronegócio irrigado é de mais de 247 quintilhões de litros por hora. Essa vazão é o equivalente a 99 trilhões de piscinas olímpicas. Ainda conforme o levantamento da FASE, apenas o consumo de água pelo agronegócio irrigado poderia abastecer 36,02 quintilhões de brasileiros.

Atualmente, a Bahia está no centro das disputas para irrigar essa atividade. O Rio Formoso apresenta uma vazão de 139 bilhões de litros por hora destinados ao agronegócio.

Local onde a barragem de rejeitos da Mina Córrego do Feijão se rompeu, em Brumadinho, em 2019 – Foto: Gustavo Baxter / UOL

No caso da mineração, Minas Gerais e São Paulo concentram 78% de toda a vazão do setor mineral, o suficiente para abastecer 234 milhões de pessoas.

Como os conflitos por água têm impactado a população?

A liderança da CPT observa que, diferentemente do que ocorre nas grandes cidades, os efeitos da disputa por água são acompanhados diariamente pelas comunidades ribeirinhas e indígenas.

A expansão da monocultura com a ampliação de áreas irrigadas, desmatamento e uso intensivo de agrotóxicos têm levado ao assoreamento de rios, diminuição de vazão, poluição e até seca de alguns mananciais. Além disso, em áreas ligadas ao garimpo ilegal, a contaminação por mercúrio se torna um problema de saúde pública. As comunidades no entorno também correm o risco de ter a saúde afetada porque consomem alimentos retirados desses rios.

“Normalmente, se discute sobre água nas áreas urbanas quando falta água na torneira das pessoas ou quando ocorrem enchentes. Nas comunidades ribeirinhas, o impacto é visto a olho nu. Elas veem a diminuição do rio, a coloração diferente da água”, analisa Isolete, ao citar a Ilha do Bananal, no Tocantins, como um exemplo disso.

“Peixes ali [na Ilha do Bananal, no Tocantins] estão sendo resgatados da lama por falta de água, exatamente em comunidades indígenas que dependem da água para sobreviver.” afirmou Isolete Wichinieski, coordenadora da CPT

Quais os caminhos para mudar esse cenário?

A coordenadora nacional da CPT afirma que, além de rever critérios para concessão das outorgas, é preciso fazer um levantamento sobre a quantidade de água disponível no país e avançar com a destinação de terras para a reforma agrária e a demarcação de terras indígenas.

Isolete acredita que, uma vez que as comunidades tradicionais atuam como guardiãs de seu território, elas podem ser aliadas na preservação desse bem comum.

“Garantir que essas comunidades possam permanecer em seus territórios é fundamental para garantir o que temos hoje para as próximas gerações e a recuperação das áreas.” disse Isolete Wichinieski, coordenadora da CPT

As terras indígenas Kayapó e Munduruku, no Pará, devastadas por garimpo ilegal no Brasil – Foto: Marizilda Cruppe / Amazônia Real / Amazon Watch

Para Maiana Teixeira, da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, é preciso enfrentar o poder privado sobre as águas. Ela recomenda não somente uma mudança técnica quanto às concessões, mas uma mudança de modelo que reveja para que finalidade e para quem o uso dos recursos hídricos são destinados.

“Assim podemos sair desse circuito de falsas soluções, em que as pessoas são responsabilizadas para diminuir o seu tempo de banho enquanto grandes donos de empreendimentos destroem impunemente nosso patrimônio.”

*Com informações de Uol