Apesar de ser uma jurista com vasta experiência em direito eleitoral, administrativo e penal e de ministrar disciplinas na Universidade de Itaúna, em Minas Gerais, Lôbo é constantemente chamada para falar sobre o racismo nas instituições, entre elas a Justiça.
E ela não foge do assunto. Em seu discurso de posse, enfatizou: “Este lugar e esta missão são a um só tempo resultado e ponto de partida de lutas históricas de grupos minorizados para vencer uma herança estrutural de desigualdade de oportunidades”.
Edilene Lôbo conversou com Universa sobre sua posse, o futuro do TSE e seu papel na democracia para superar as desigualdades de raça e gênero.
Confira a entrevista a seguir:
Como você se sente com a nomeação de primeira mulher negra no TSE?
Durante minha vida inteira eu me preparei para estar aqui. Então tenho orgulho de poder subir um degrau tão importante na minha carreira, na corte máxima da Justiça Eleitoral do Brasil. Só que, além do orgulho, também sinto uma responsabilidade, porque espaços públicos como esse são espaços coletivos.
Na condição de primeira ministra negra, tenho um dever ainda maior, porque compreendo que é necessário que nós mulheres negras ocupemos o mais depressa possível os espaços decisórios. Na minha vida pessoal tive dificuldade em ascender nesses espaços, por isso sei o que passam as mulheres negras neste país. Para viverem, para sobreviverem, que dirá para sonharem em ocupar um posto como esse.
É meu dever continuar lutando para abrir caminho para tantas outras mulheres negras. Quando nós temos oportunidade, nós fazemos muito, a gente é muito boa, sabe trabalhar.
Uma vez que o meio jurídico é bastante branco e masculino, essa não deve ser a primeira vez que você é a primeira negra em algum lugar, certo?
Eu sou do extremo norte do estado de Minas Gerais, minha cidade chama Taiobeiras, está bem coladinha no Vale do Jequitinhonha. E lá eu aprendi com o povo geraizeiro, que é um povo muito criativo, inteligente e resistente.
Essa teimosia me permitiu resistir. Começar a minha vida trabalhando de empacotadora em um supermercado no entorno de Belo Horizonte, para onde eu fui quando saí da minha cidade. Me permitiu estudar em uma escola de direito, me permitiu ser professora dessa instituição.
Essa minha teimosia, e o apoio de amigos e família, me permitiu cursar mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais, fazer um doutorado e estudar fora do Brasil.
E em todo esse percurso eu via pouquíssimas pessoas como eu. Foi muita luta e à custa de muita energia. Eu fui uma adolescente sem adolescência, uma criança com a infância encurtada.
Minha carteira de trabalho foi registrada cinco dias antes de eu completar 14 anos. Eu trabalhava e estudava o tempo que me restava, tinha que auxiliar em casa.
Não foi fácil, e eu sei que continua não sendo fácil para muitas pessoas como eu. Por isso que quando eu ouço alguém dizer que basta você se esforçar para conseguir algo, eu digo que isso é um absurdo.
Eu conheci muita gente trabalhadora e esforçada que morreu tão pobre como começou, que morreu tão explorada como começou. A gente também precisa combater esse discurso meritocrático. O Brasil ainda é uma sociedade excludente que não trata bem a juventude negra, as mulheres negras, sua diversidade.
Qual a importância de se ter uma mulher negra no TSE?
A Constituição Brasileira diz que nós devemos aplicar o princípio da igualdade em todos os espaços, especialmente no público. Assim, eu acrescento aqui a igualdade de gênero.
E quando nós falamos do combate à discriminação de raça, a Constituição também fala sobre pluralismo. Ela se refere ao pluralismo político, mas eu acrescento a pluralidade de etnias, raças etc.
Dessa forma, é trabalhado, também, outro princípio constitucional, que é o da equidade. Falar de mulheres negras nos espaços decisórios, então, é trabalhar com a conexão desses princípios constitucionais.
Mas o que significa ter mulheres negras no judiciário para além da aplicação do texto constitucional?
Eu falei de igualdade e equidade e acrescento agora o princípio da eficiência. Quanto mais plural for um coletivo julgador, mais chances ele tem de acertar, porque nós teremos opiniões e visões diferentes. Isso vai imprimir eficiência na atividade judicial.
Além disso, temos outro princípio importante, que é o da democracia. Não é justo que pessoas negras sejam julgadas sempre em um universo no qual elas não se vejam representadas.
E, por fim, coloco um quinto princípio, que é o da justiça.
Nós, mulheres negras, somos a maioria da população brasileira, não faz sentido que não estejamos nesses espaços.
Como o TSE pode ajudar no combate às desigualdades de gênero e raça no Brasil?
Primeiro, o TSE diz que nós temos uma Constituição que, por sua vez, ancora o Estado de direito na cidadania, na soberania e no pluralismo, ou seja, na diversidade.
Essa mesma constituição diz que é objetivo da República combater todo tipo de desigualdade, inclusive a discriminação de gênero, raça e credo. Nela também está escrito que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.
Assim, quando o TSE, por exemplo, garante uma cota mínima de mulheres disputando as eleições, ele está combatendo a desigualdade de gênero na política.
Há uma intensa pressão popular para que o presidente Lula indique uma mulher negra para o STF. Como você vê esse movimento da sociedade civil e por que você acha que ele tem acontecido?
A Constituição diz que é fundamental o direito à associação desde que ela não deponha ou opere contra o Estado democrático de direito.
Quando pessoas se organizam para defender a ampliação da participação de grupos minorizados nos espaços decisórios, vemos uma conjugação de esforços para atingir o objetivo do artigo 3º da Constituição, que é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
E desde que esteja no debate ideias, sem violência, não há problema em se opor a esse posicionamento.
E eu digo aqui com muita tranquilidade, e fico à disposição para um debate com quem pensa diferente, que trabalhar para ampliação da participação de mulheres negras nos espaços decisórios, em especial no judiciário, é caminhar na direção de um objetivo fundamental da República Brasileira.
Como você vê as críticas que afirmam que esse é um debate meramente identitário?
Ao longo da história a gente vê um simplismo no tratamento de temas complexos. É simplista reduzir a luta das pessoas negras por visibilidade e inclusão como apenas uma luta por identidade. E isso não quer dizer que essa luta também não seja por identidade.
Eu não vejo o menor problema nisso, mas é mais que isso, estamos falando sobre reparação, que é algo que não se discute.
Quando pessoas negras, e particularmente as mulheres, vão em busca de reparação, é somente para fazer valer o ordenamento desse país.
A nossa luta por identidade é justa porque tentam nos apagar a todo tempo, tentam embranquecer a população brasileira exatamente para não nos reconhecer.
Você tem artigos publicados sobre mídias sociais e democracia, combate às milícias digitais, violência política. Como vai ser sua atuação nessas áreas?
É claro que na medida em que eu for convocada para atuar no tribunal, minhas pesquisas vão me permitir reafirmar aquilo que eu também tenho observado no TSE.
Fake news não é a simples difusão equivocada da desinformação, que muitas vezes acontece até sem consciência. Fake news é um conjunto de ações que envolvem a consciência da falsidade daquela notícia que é usada para causar dano e obter vantagem —no nosso caso aqui, vantagens políticas.
Mas dois pontos, em especial, me chamam atenção, já para ficarmos de olho nas eleições de 2024. Ao lado do processo de desinformação com atuação de milícias digitais, outra grande preocupação que tenho é o combate à violência política de gênero e de raça.
Para esses pontos —violência política de gênero e raça, fake news e milícias digitais— temos decisões importantes já tomadas pelo tribunal e estudos interessantes feitos e divulgados pelo TSE, e eu com a minhas pesquisas vou poder reforçar tudo isso.
Você acredita que fake news contribuem com a desigualdade social, de raça e de gênero?
Sem dúvida. Nós já aprendemos com as últimas eleições que, primeiro, as fake news matam, é só lembrar da pandemia.
Quantas pessoas não foram manipuladas por fake news com relação aos fármacos para tratar a covid-19 e com relação ao isolamento social? Eu me lembro de pessoas sendo capazes de abrir caixões na marra porque as fake news diziam que não havia pessoas ali dentro ou que as pessoas que morreram não morreram de covid.
E sempre que eu falo desse assunto eu fico emocionada, porque eu perdi duas irmãs para covid-19 numa diferença de 15 dias. É muito triste.
Assim como as fake news matam pessoas, elas matam a democracia com muito discurso de ódio.
No último mês, a presidente do PT Gleisi Hoffmann criticou e pediu o fim da Justiça Eleitoral. Durante todo o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o TSE foi extremamente atacado, o ex-presidente chegou a dizer que se não vencesse a eleição, o problema estaria no Tribunal. Como você enxerga críticas à politização do TSE?
Críticas em uma democracia, críticas responsáveis, são muito bem-vindas, porque elas aperfeiçoam o funcionamento das instituições democráticas. Por outro lado, é preciso que essas autoridades tenham muito cuidado com esse tipo de manifestação num momento tão sensível para o tribunal.
É importante termos muito cuidado para que as palavras não nos traiam. Temos que ter cuidado para não difundir desinformação e principalmente não desvalorizar uma instituição de Justiça. O TSE organiza pleitos, julga ações envolvendo o processo político, e regulamenta a lei explicitando seus conteúdos para melhor aplicação na realidade.
O que eu quero dizer é que o TSE tem um papel muito importante nesta democracia. Nós estamos falando de uma grande estrutura financiada com dinheiro do povo e é importante que ela sirva para beneficiar e proteger a democracia.
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