O caso do suposto presente da Arábia Saudita para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro afrontou regras tanto na tentativa de ingresso das joias no Brasil como na interpretação sobre o que é público e o que é pessoal no acervo de um presidente da República.
Em primeiro lugar, a suposta resistência do governo em declarar como bem público as joias e relógios avaliados em R$ 16,5 milhões contraria frontalmente entendimento fixado pelo Tribunal de Contas da União desde 2016.
Na ocasião, o TCU preencheu vácuo legal sobre o tema, o que resultou, inclusive, na devolução ao patrimônio comum da Presidência de cerca de 500 presentes que estavam nos acervos particulares de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dilma Rousseff (PT).
Documentos que vieram a público no caso das joias sauditas mostraram que assessores da Presidência e do Ministério de Minas e Energia fizeram solicitações genéricas à Receita, que reteve as joias, argumentando que só depois do desembaraço na alfândega haveria a definição sobre se o material iria para acervo público ou privado da Presidência.
A lei 8.394/1991, do governo Fernando Collor de Mello, trata da preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República. Ela foi regulamentada pelo decreto 4.344/2002, de Fernando Henrique Cardoso.
“Os documentos que constituem o acervo presidencial privado são, na sua origem, de propriedade do Presidente da República, inclusive para fins de herança, doação ou venda”, afirma a lei.
Apesar de essas normas tratarem especialmente da produção documental dos presidentes, a falta de outra previsão legal fez um artigo ser usado por vários anos como suporte à interpretação de que presentes recebidos pelos mandatários só seriam incorporados ao patrimônio público caso fossem recebidos em solenidade de troca de presentes.
Trata-se do ponto que estabelece que “documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes” são públicos, não privados.
Ou seja, por analogia, interpretava-se que só presentes recebidos nessas cerimônias seriam obrigatoriamente públicos.
Em 2016 o Tribunal de Contas da União concluiu julgamento (acórdão TCU 2255/2016) que mudou essa interpretação, com base, entre outros, no princípio constitucional da moralidade (artigo 37).
Relatou-se neste julgamento não haver previsão legal clara que estabelecesse regras de recebimento e posse de presentes pelos mandatários e que isso estaria levando a uma situação em que eles próprios e assessores estariam definindo, sem regra clara, o que ao final do mandato ficaria sob domínio público e o que seria incorporado ao patrimônio privado.
“Imagine-se a situação de um chefe de governo presentear o presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que (…) possam incorporar-se ao patrimônio privado do presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade”, escreve o ministro Wallton Alencar, relator do caso.
O ministro ressaltou, entre vários outros argumentos, o fato de que o dinheiro para bancar presentes dados a autoridades estrangeiras sai dos cofres públicos. Logo, a contrapartida, os presentes recebidos, também devem ser públicos, a exceção de itens de uso pessoal ou de caráter personalíssimo.
Neste acórdão, o TCU identificou que, de 1.073 presentes recebidos de 2002 a 2016, apenas 15 haviam sido incorporados ao patrimônio público. Com isso, determinou a devolução de 434 presentes por Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e 117 por Dilma Rousseff (2011-2016).
Em ação de monitoramento das determinações deste acórdão, datado de agosto de 2019, o TCU apontou que os representantes de Lula haviam devolvido à esfera pública 360 dos 434 presentes, que estavam acondicionados no galpão do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.
“Representantes da ex-presidente Dilma Vana Rousseff indicaram que os bens sob sua responsabilidade estariam no galpão da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados na Região de Porto Alegre, em Eldorado do Sul/RS”, informou o documento, acrescentando que lá foram encontrados 111 dos 117 presentes requisitados.
Em 2020 o caso foi ao arquivo sob o argumento de que as recomendações do acórdão de 2016 foram cumpridas.
Em sessão de 1º de março deste ano, o TCU julgou caso correlato e aprovou o acórdão 326/2023 orientando comitiva do governo Bolsonaro que foi ao Qatar em 2019 a entregar para o patrimônio público brasileiro relógios das grifes Hublot e Cartier (no valor de até R$ 53 mil cada um) que receberam de presente.
Assim como em 2016, o tribunal considerou que o recebimento dos presentes contraria os princípios da moralidade e razoabilidade. Entre os que receberam os relógios de grife estão os ex-ministros Gilson Machado (Turismo) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS).
Entrada no Brasil
O segundo ponto em que o caso das joias colide com leis e regras está na forma em que a comitiva brasileira que foi à Arábia Saudita tentou entrar com elas no Brasil.
O Regulamento Aduaneiro (decreto 6.759/2009) e instruções normativas da Receita Federal não permitem o que o militar Marcos André dos Santos Soeiro tentou fazer no dia 26 de outubro de 2021.
O assessor do então ministro Bento Albuquerque (Minas e Energia) chegou ao país com joias e relógio avaliados em R$ 16,5 milhões dentro de sua bagagem pessoal, sem declaração à alfândega. Acabou parado no aeroporto de Guarulhos e o material foi apreendido.
Pela lei, bens adquiridos no exterior que tenham valor superior a US$ 1.000 (pouco mais de R$ 5.000) precisam ser declarados à Receita na entrada no Brasil, sofrendo tributação de 50% sobre o excedente.
A afirmação de que o par de brincos, o anel, o colar e o relógio confeccionados com pedras preciosas não seriam de Soeiro, mas um presente de estado dado pelos sauditas à então primeira-dama Michelle Bolsonaro, levou a uma situação diferente, de acordo com a lei e as regras da Receita.
O material passou a não ser enquadrado no conceito de uma bagagem comum. Como descrito no Regulamento Aduaneiro, no artigo 156, o “viajante não poderá declarar como própria bagagem de terceiro”.
Com isso, o tratamento passou a ser o de “regime de importação comum”, estabelecido no artigo 161 do regulamento. Essa categorização “poderia e deveria ter sido adotada pelo portador dos bens”, escreveu a Alfândega de Guarulhos ao gabinete de Jair Bolsonaro, em ofício enviado posteriormente.
Com o regime de importação, os representantes do governo deveriam ter procurado a alfândega, provado a doação feita pelas autoridades árabes e formulado uma declaração de importação do material para o acervo da União, o que não resulta em cobrança de tributação.
Isso nunca foi feito, de acordo com a Receita e integrantes do Fisco ouvidos pela Folha.
“Na hipótese de agente público que deixe de declarar o bem como pertencente ao Estado Brasileiro, é possível a regularização da situação, mediante comprovação da propriedade pública e regularização da situação aduaneira. Isso não aconteceu no caso em análise, mesmo após orientações e esclarecimentos prestados pela Receita Federal a órgãos do governo”, disse o Fisco, em nota.
Em vez disso, houve tentativas de desembaraço das joias por meio de “carteiradas”, de acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, que revelou o caso —como a do envio a Guarulhos, a três dias do fim do mandato de Jair Bolsonaro, em 29 de dezembro, do militar Jairo Moreira da Silva em um avião da Força Aérea Brasileira para “atender demandas do senhor presidente da República naquela cidade”.
O então secretário especial da Receita Federal, Julio Cesar Vieira Gomes, acabou nomeado em 30 de dezembro para a Embaixada do Brasil em Paris, o que foi revogado posteriormente no governo Lula.
A retirada das joias sem que houvesse a formalização de que elas iriam compor o patrimônio da União só seria possível com o pagamento do tributo de 50% e de multa de outros 50% pela tentativa de sonegação —ou seja, praticamente os R$ 16,5 milhões, pelos cálculos da Receita.
De acordo com integrantes do Fisco e especialistas ouvidos pela Folha, entre eles Dão Real Pereira dos Santos, diretor de Relações Internacionais e Intersindicais do Sindifisco (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita), os caminhos legais para traslado de presentes dados por autoridades estrangeiras a autoridades nacionais são outros.
O mais aconselhável é o despacho por transportadora, ou pela própria companhia aérea, como serviço de transporte. O material seria então encaminhado para a alfândega brasileira acompanhado do respectivo “conhecimento de transporte” (artigo 40 do Regulamento Aduaneiro).
Com isso, caberia ao governo retirar o material após cumprir algumas exigências, entre elas a prova de que o bem será incorporado ao patrimônio público.
“Mesmo trazendo ele próprio as joias, ele deveria informar na alfândega que não se tratava de bagagem, mas de um presente. As joias ficariam na alfândega por até 90 dias, para procedimento de despacho aduaneiro”, afirma Dão.
“Se o presente era para o governo, o governo deveria registrar uma declaração de importação tendo como documento de instrução alguma carta ou documento que demonstrasse ser realmente um presente. Neste caso não há tributos, pois os órgãos públicos têm imunidade.”
Caso a comitiva informasse na área de alfândega que o presente se destinava a acervo particular, de Michelle ou de Bolsonaro, por exemplo, também deveria ser registrada a declaração de importação e a realização de despachos aduaneiros.
Neste caso, porém, haveria a cobrança de diversos tributos, normais para esse tipo de produto, como Imposto de Importação, IPI, PIS e Cofins.
*Com informações da Folha de São Paulo