Está prestes a ser aprovado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado um projeto de lei que beneficia proprietários de imóveis rurais que desmataram ilegalmente reservas legais. A matéria amplia em quatro anos o marco temporal estabelecido pelo Código Florestal, permitindo que áreas desmatadas até 25 de maio de 2012, data de publicação do código, se tornem regulares. Especialistas falam em ampliação de anistia.
O projeto, de autoria do senador Irajá (PSD-TO) e relatado por Soraya Thronicke (União-MS), teve o relatório lido na comissão na última quinta-feira (5). O texto só não foi votado porque não havia quórum para a votação nominal, que é exigido em caso de decisões em caráter terminativo. Projetos aprovados em caráter terminativo não precisam passar pelo plenário. Se aprovado na comissão, o texto seguirá direto para a Câmara dos Deputados.
Uma das maiores discussões em torno do Código Florestal, aprovado em 2012, foi sobre o marco temporal das áreas rurais consolidadas. Após aprovado, o código concedeu anistia aos proprietários que cometeram infração ambiental até 22 de julho de 2008, data do decreto que definiu os crimes na lei de crimes ambientais.
Assim, a regularização ambiental de um imóvel passou a depender de quando a vegetação daquela reserva legal foi suprimida: se antes de julho de 2008, o código permitiu uma regularização mais flexível, por meio da adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), com assinatura de termo de compromisso para regularizar o imóvel. Depois dessa data, a regularização segue regras mais rígidas.
O projeto em discussão propõe um novo artigo ao Código Florestal, permitindo que o proprietário que desmatou ilegalmente após 22 de julho de 2008 possa regularizar o imóvel, desde que a supressão tenha ocorrido até 25 de maio de 2012. A matéria muda o marco legal de regularização.
Para regularizar a propriedade, também é preciso aderir ao PRA. Além disso, a área a ser usada para compensação deve ser equivalente “ao dobro da área de reserva legal a ser recuperada na área original e estar localizada no mesmo bioma”. Especialistas apontam que o projeto é uma anistia a crimes ambientais.
Em nota técnica, as pesquisadoras do Climate Policy Initiative, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Cristina Lemes Lopes e Joana Chiavari avaliam que o projeto “representa uma medida extremamente danosa, não apenas em termos de área anistiada, mas também em termos do impacto na implementação do Código Florestal nos estados, além de abrir um grave precedente para que o marco temporal da regularização ambiental seja rediscutido para todas as áreas consolidadas”.
“Embora o PL proponha uma compensação pelo dobro da área desmatada, acenando para a possibilidade de um ganho ambiental, em realidade, a pretendida alteração do marco temporal é uma medida extremamente danosa para a implementação do Código Florestal. Caso aprovado, o PL promoverá impactos não apenas em termos de área anistiada, mas também na implementação da lei nos estados, ignorando todo o empenho e os recursos já aplicados na análise e validação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) pelos mesmos”, pontuaram.
Secretária-executiva do Observatório do Código Florestal, Roberta Del Giudice afirma que o projeto é um péssimo sinal. “Quando você adia o prazo, você dá sinal de que a lei não precisa ser cumprida”, diz. Del Giudice lembra que vem havendo regularmente a prorrogação do prazo para adesão no PRA, o que já ocorreu ao menos cinco vezes, desde 2012. “É um sinal muito ruim de que o crime compensa. Quem desmatou nunca se vê obrigado a dar início a esse cumprimento [da lei]. Não começa a aplicação da lei em campo. É sempre adiado, adiado”, diz.
A secretária ressalta que o projeto sozinho poderia ter o efeito citado pela relatora, de preservação. “Mas esse projeto não vem sozinho no mundo legislativo. Ele vem com a regularização fundiária, com outras propostas de adiamento de prazo do Código Florestal. E aí você tem uma bomba-relógio para desmatamento de imóveis públicos para grilagem, porque a ocupação irregular de área de floresta é para isso”, afirma.
Na justificativa do projeto, o senador Irajá explica que o mecanismo de compensação previsto hoje no código para aqueles que desmataram até julho de 2008 permite a continuidade das atividades econômicas naquele local e, ao mesmo tempo, mantém a conservação do meio ambiente em áreas equivalentes. A questão, no entanto, não abrange quem desmatou até 2012, quando o código foi publicado.
O senador defende que essa situação “leva à perda de oportunidade de conservação de áreas cobertas por vegetação nativa não sujeitas à proteção legal e dificulta a consolidação territorial de Unidades de Conservação que têm áreas pendentes de regularização fundiária”. Ele afirma que as consolidações de áreas rurais mais recentes precisam ser tratadas com mais rigor, e por isso propôs que a compensação seja o dobro da área de reserva legal que foi desmatada.
“Entendemos que a possibilidade de compensação de Reserva Legal deve ser ampliada. (…) Além disso, seguindo a linha do rigor no tratamento das supressões de reservas mais recentes, a alteração proposta não tem influência nas sanções administrativas, cíveis e penais cabíveis”, aponta. No relatório, a senadora Soraya defende que “a aprovação do PL poderá conciliar o desenvolvimento da produção agropecuária com a preservação do meio ambiente”.
A secretária-executiva do Observatório do Código Florestal, Roberta Del Giudice, no entanto, afirma que apesar de o texto do projeto prever que para regularização é preciso adesão ao PRA e compensação em dobro ao déficit da reserva legal no mesmo bioma, de nada adianta se não for atestada a viabilidade de regeneração da área que será usada para fins de compensação.
“A reserva legal pode ser compensada em uma outra área. Essa área precisa ter a possibilidade, a viabilidade de regeneração. É preciso que haja um potencial de regeneração atestado por um órgão ambiental antes de você fazer essa compensação. Isso deveria estar previsto no texto”, afirma. Ela ressalta, ainda, que existem regiões tão desmatadas que a não recuperação da reserva legal gera um impacto ambiental muito negativo, inclusive para a produção agrícola.
“Não adianta ter grandes áreas de floresta na Amazônia, e não ter no Cerrado. Ou ter no Cerrado em uma região do estado, e em outra região do mesmo estado não ter Cerrado algum. Tem que ter vegetação local para beneficiar os microclimas”, diz.
As pesquisadoras Cristina Leme Lopes e Joana Chiavari também apontam para um risco relativo à instabilidade jurídica. De acordo com elas, os dois regimes de regularização ambiental, com regras distintas para quem desmatou antes e depois de julho de 2008, por si só tornam o Código complexo e de difícil implementação.
A análise de cada imóvel rural se dá por meio do CAR, avaliado pelo órgão estadual competente. Hoje, conforme as pesquisadoras, em torno de 378 mil cadastros (em análise, analisados ou com pendências) ainda não foram regularizados. “Qualquer alteração no marco temporal que define o regime jurídico das áreas rurais consolidadas em Reserva Legal, implicaria na reanálise de um número significativo de cadastros. A análise dos cadastros é hoje o maior desafio da implementação da lei florestal”, ressaltam.
Além de todos os problemas, na prática, segundo Roberta Del Giudice, o projeto beneficia poucos proprietários que desmataram grandes áreas, quando são poucos os imóveis que têm déficit de reserva legal. A informação é corroborada por Cristina Leme Lopes e Joana Chiavari. “Caso aprovado, o PL seria capaz de premiar tão somente um seleto grupo de médios e grandes produtores rurais, tendo em vista que 96% dos imóveis rurais já cumprem com os requisitos de Reserva Legal”, afirmam, em nota técnica.
*Com R7